09 maio 2013

Contemplação e ação ontem e hoje


Há cada vez mais pessoas que não estão satisfeitas com o mundo em que vivemos. Raras são, porém, aquelas que fazem alguma coisa para o transformar. Destas, umas procuram torná-lo melhor por meio do seu esforço, individual ou coletivo; outras acham que os defeitos do mundo não estão no próprio mundo, mas no olhar de quem nele vive; por isso procuram transformar-se a si próprias e mudar o olhar com que o veem. As primeiras são partidárias da ação; as segundas confiam nos efeitos da contemplação. Ambas as atitudes são universais. Encontram-se em todas as sociedades civilizadas. Determinam os grandes princípios fundamentais das grandes religiões. O Oriente cultivou mais a contemplação; o Ocidente, sobretudo depois do século XIII, desenvolveu mais a ação. A relação do homem com o mundo deu lugar na opções diferentes. Os programas de intervenção ou de não-intervenção diversificaram-se e evoluíram. Há, portanto, uma história da ação e da contemplação. No Ocidente essa história confunde-se com a história da Igreja, e mais precisamente, com a história das ordens religiosas, ou seja com a história do seu sucesso ou insucesso na tarefa de mudar o mundo para melhor, isto é, para resolver os problemas decorrentes da vida do homem em sociedade. 

A minha tese, se assim lhe posso chamar, é que não basta a ação; é preciso também a contemplação. Talvez mais ainda: sem ela de nada vale a ação. Creio que a História da Humanidade mostra isso mesmo. Não a História factológica, superficial, externa, mas a História da realização das potencialidades do género humano. Ou a História da Humanidade em busca da sua plenitude. Ou a história da revelação de Deus presente na realidade concreta do mundo. 

(…) 

Com efeito, a contemplação mostra-nos a fantástica variedade, complexidade e coerência dos fenómenos da vida, da constituição da matéria, e da prodigiosa dimensão e regularidade do mundo cósmico. A contemplação intensifica a fruição da arte na música, na pintura, na poesia, no teatro e no cinema. A contemplação torna-nos sensíveis ao riso e à frescura das crianças e de tudo o que começa de novo. A contemplação faz-nos descobrir em toda a parte homens e mulheres inesperadamente inventivos, generosos e honestos. A contemplação inspira-nos o respeito e a admiração por quem é capaz de manter a dignidade face ao sadismo dos torcionários nas prisões e campos de concentração. A contemplação abre os nossos ouvidos ao clamor dos famintos e dos oprimidos em todo o mundo e em toda a História, e faz-nos partilhar com eles a compaixão pela humanidade ferida. A contemplação introduz-nos no mistério do sofrimento que se torna passagem para a ressurreição através da morte aceite e vencida, e mostra-o em Jesus Cristo, Filho de Deus, sinal da invencibilidade da vida. A contemplação associa como num único sujeito todos os homens e mulheres que desde o princípio do mundo perscrutaram o mistério do Uno e do Todo. Assim, o homem contemplativo perde o medo do futuro. Vive no presente e descobre, a cada passo, nas coisas grandes e pequenas, nas coisas boas e más, na doença e na saúde, na prosperidade e na pobreza, na paz e na guerra, a espantosa realidade das coisas. 

Mas a contemplação é um exercício exigente. Requer a concentração, o despojamento e a solidão. Exige de quem a busca o descentramento de si mesmo. Por isso não é só um exercício de lucidez; é também uma forma de vida. Por isso há ordens religiosas que se lhe consagram inteiramente. A antiga polémica entre ordens ativas e ordens contemplativas não tem sentido. O olhar abrangente e lúcido sobre o mundo diz-nos que a ação e a contemplação não devem ser exclusivas, e que é inútil estabelecer regras acerca do grau de consagração a uma ou outra. Enquanto houver seres humanos que a ela se entregam, de alma e coração, podemos olhar sem medo para o futuro. 

José Mattoso

Historiador 
Congresso Ordens e Congregações Religiosas em Portugal (Lisboa, 2-4-11-2010) 

3 comentários:

Anónimo disse...

a acção sem contemplação assenta e alimenta a individualidade. nós e o "outro". nós separados do "outro". Esta acção divide.

a contemplação, donde resulte a realização de que nós *somos* o "outro" (e, em última análise, o universo), gera uma acção que é unificadora.

Anónimo disse...

Excepcional texto!
Obg
fq

LA disse...

Grande escolha.

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