31 outubro 2013

Crónicas de um mestrando tardio


O enunciado do último ensaio entregue era este. Aqui está a minha contribuição.

JdB

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Fixemo-nos na primeira pergunta: a frase “I’ll tell you straight” é uma frase verdadeira?
Retomemos o pensamento de Frege, para quem:
  •                Conhecimento são juízos onde se junta um pensamento com um referente.
  •                Frases com referência transmitem conhecimento e
  •                frases sem referência não transmitem conhecimento.

Ainda segundo Frege, todas as frases que contêm uma palavra sem referente não têm referente e, nesse sentido, não podem veicular conhecimento. Frases que caiem neste tipo não podem ser consideradas verdadeiras nem falsas.
A frase citada – “Mine eyes are not o’ the best: I’ll tell you straight” é atribuída a Shakespeare, na sua obra King Lear, sendo proferida na terceira cena do quinto acto, quando o Rei Lear fala com Kent.
Imaginemos que o actor tem, de facto, uma excelente visão. A frase “I’ll tell you straight” (vou ser directo), depois da referência a uma falta de visão, é verdadeira?
Acontece que o Rei Lear é uma personagem saída da imaginação do dramaturgo inglês, assim como Kent. Nenhum dos dois existiu na realidade. O facto de o actor que incarna o personagem ter, na realidade, excelentes olhos (também poderia ser quase cego) é irrelevante para o caso, se seguirmos a teoria de Frege: frases ditas por entidades ficcionais não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas.

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Abordando o tema por outra vertente, poderíamos ir mais além e classificar um actor, pela natureza do seu trabalho, como simples repetidor (papagueador, passe o neologismo) de frases escritas por outros. Entenderíamos inclusivamente, como Frege, que um actor está mais próximo de um papagaio do que uma pessoa. Só assim se compreende que, reproduzindo com fidelidade o guião que lhes é entregue, um cego possa falar nos pássaros que vê e um anão se autodefina como tendo dois metros de altura (ambos os exemplos em sentido literal, e não metafórico).
Para Anscombe, “A resposta às questões aqui levantadas é a de que não podemos atribuir um verdadeiro fingimento a nada a menos que possamos atribuir-lhe (a) um objectivo e (b) a ideia de ‘pode obter-se parecendo que...’”.
Diz ainda Anscombe: “Independentemente destas simpáticas projecções, temos de afirmar: só podemos atribuir fingimento a seres aos quais possamos atribuir cálculo proposital (purposive calculation)”. Ora, na abordagem que classifica o actor como um papagaio, podemos questionar-nos se é possível atribuir-se ao pássaro um cálculo proposital. E se não há cálculo proposital, como pode haver fingimento? A resposta à segunda pergunta, que inquiria se o actor está a fingir, seria, por esta abordagem mais zoológica, não.

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Para Anscombe, é necessário tempo para que possamos perceber a natureza de uma paixão. Entendam-se, como exemplos de paixão, a fúria ou a tristeza, por oposição aos exemplos de emoção (sensação), como a pele-de-galinha ou a transpiração.
Aludindo ao caso do presumível fingimento de uma dor, diz Anscombe: “no entanto, isto não significa que haja normalmente dificuldade em saber se alguém sente dor ou não. A dificuldade ocorre nalguns casos; e por vezes não consegue resolver-se. Podemos também pensar na fúria; mas haveria muito mais a considerar no caso da fúria: toda a história da ocasião (the whole story of the occasion)”.
Para Anscombe, portanto, precisamos de conhecer toda a história – razões, motivos, causas, etc. – para distinguir uma fúria genuína de uma não genuína. Precisamos de tempo para saber se há ou não fingimento.
Regressemos então ao diálogo do Rei Lear. Já concluímos que a frase não é, na visão fregeana, verdadeira nem falsa, porque é proferida por um personagem de ficção, um personagem que nunca existiu. Concluímos ainda que o actor, numa abordagem que junta Frege e Anscombe, não finge, porque não há cálculo proposital. O actor papagueia uma frase, não tem um objectivo que possa ser-lhe atribuído.
Quando o actor proclama a frase “[Mine eyes are not o’ the best]: I’ll tell you straight” está ele a fingir? A segunda parte da frase do Rei Lear remete-nos para uma espécie de franqueza, um desejo de ser-se directo. Ora, a franqueza será, na acepção de Anscombe, uma paixão. Nesse sentido, seríamos  forçados a conhecer a whole story of the occasion antes de nos pronunciarmos: quais são as verdadeiras razões/motivações/causas para o Rei Lear dizer aquela frase ao seu interlocutor? E que forma temos de detectar se alguém é/está a ser directo/sincero?
Entrando no drama de Shakespeare, isto é, assumindo o Rei Lear e o Conde de Kent como pessoas de carne e osso, a whole story seria, de facto, uma condição necessária para averiguarmos da sinceridade – por oposição a fingimento -  da frase referida. Mas falamos de actores. Sabemos, ainda segundo Anscombe, que “o fingimento é um conceito dependente de uma intenção”. Ora, onde está a intenção do actor, a não ser entreter uma audiência sendo o mais fiel possível ao texto e encenação? Como pode ele então fingir o que quer que seja, excepto fingir ser alguém, que na realidade não é nem nunca será, por via da sua própria profissão?
Por outro lado, sendo que uma acção fingida não pode ser interpretada porque não é bem uma acção, e considerando que o actor é um fingidor, como poderemos, em bom rigor, interpretar a sua motivação? O actor finge sempre. O Rei Lear finge? Teríamos de saber a história completa.

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