O enunciado do último ensaio entregue era este. Aqui está a minha contribuição.
JdB
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Fixemo-nos na primeira
pergunta: a frase “I’ll tell you
straight” é uma frase verdadeira?
Retomemos o pensamento de
Frege, para quem:
- Conhecimento são juízos onde se junta um pensamento com um referente.
- Frases com referência transmitem conhecimento e
- frases sem referência não transmitem conhecimento.
Ainda segundo Frege, todas as
frases que contêm uma palavra sem referente não têm referente e, nesse sentido,
não podem veicular conhecimento. Frases que caiem neste tipo não podem ser
consideradas verdadeiras nem falsas.
A frase citada – “Mine eyes are
not o’ the best: I’ll tell you straight” é atribuída a Shakespeare, na sua obra
King Lear, sendo proferida na
terceira cena do quinto acto, quando o Rei Lear fala com Kent.
Imaginemos que o actor tem, de
facto, uma excelente visão. A frase “I’ll tell you straight” (vou ser directo), depois da referência a
uma falta de visão, é verdadeira?
Acontece que o Rei Lear é uma personagem saída
da imaginação do dramaturgo inglês, assim como Kent. Nenhum dos dois existiu na
realidade. O facto de o actor que incarna o personagem ter, na realidade,
excelentes olhos (também poderia ser quase cego) é irrelevante para o caso, se
seguirmos a teoria de Frege: frases ditas por entidades ficcionais não podem
ser consideradas verdadeiras ou falsas.
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Abordando o tema por outra vertente, poderíamos
ir mais além e classificar um actor, pela natureza do seu trabalho, como simples
repetidor (papagueador, passe o
neologismo) de frases escritas por outros. Entenderíamos inclusivamente, como Frege,
que um actor está mais próximo de um papagaio do que uma pessoa. Só assim se
compreende que, reproduzindo com fidelidade o guião que lhes é entregue, um
cego possa falar nos pássaros que vê e um anão se autodefina como tendo dois
metros de altura (ambos os exemplos em sentido literal, e não metafórico).
Para Anscombe, “A resposta às
questões aqui levantadas é a de que não podemos atribuir um verdadeiro
fingimento a nada a menos que possamos atribuir-lhe (a) um objectivo e (b) a
ideia de ‘pode obter-se parecendo que...’”.
Diz ainda Anscombe: “Independentemente destas
simpáticas projecções, temos de afirmar: só podemos atribuir fingimento a seres
aos quais possamos atribuir cálculo proposital (purposive calculation)”. Ora, na abordagem que classifica o actor
como um papagaio, podemos questionar-nos se é possível atribuir-se ao pássaro
um cálculo proposital. E se não há cálculo proposital, como pode haver
fingimento? A resposta à segunda pergunta, que inquiria se o actor está a
fingir, seria, por esta abordagem mais zoológica, não.
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Para Anscombe, é necessário
tempo para que possamos perceber a natureza de uma paixão. Entendam-se, como
exemplos de paixão, a fúria ou a tristeza, por oposição aos exemplos de emoção
(sensação), como a pele-de-galinha ou a transpiração.
Aludindo ao caso do presumível
fingimento de uma dor, diz Anscombe: “no entanto, isto não significa que haja
normalmente dificuldade em saber se alguém sente dor ou não. A dificuldade
ocorre nalguns casos; e por vezes não consegue resolver-se. Podemos também
pensar na fúria; mas haveria muito mais a considerar no caso da fúria: toda a
história da ocasião (the whole story of the occasion)”.
Para Anscombe, portanto,
precisamos de conhecer toda a história – razões, motivos, causas, etc. – para
distinguir uma fúria genuína de uma não genuína. Precisamos de tempo para saber
se há ou não fingimento.
Regressemos então ao diálogo do
Rei Lear. Já concluímos que a frase não é, na visão fregeana, verdadeira nem
falsa, porque é proferida por um personagem de ficção, um personagem que nunca existiu.
Concluímos ainda que o actor, numa abordagem que junta Frege e Anscombe, não
finge, porque não há cálculo proposital. O actor papagueia uma frase, não tem
um objectivo que possa ser-lhe atribuído.
Quando o actor proclama a frase
“[Mine eyes are not o’ the best]: I’ll tell you straight” está ele a fingir? A
segunda parte da frase do Rei Lear remete-nos para uma espécie de franqueza, um
desejo de ser-se directo. Ora, a franqueza será, na acepção de Anscombe, uma
paixão. Nesse sentido, seríamos forçados
a conhecer a whole story of the occasion
antes de nos pronunciarmos: quais são as verdadeiras razões/motivações/causas
para o Rei Lear dizer aquela frase ao seu interlocutor? E que forma temos de
detectar se alguém é/está a ser directo/sincero?
Entrando no drama de
Shakespeare, isto é, assumindo o Rei Lear e o Conde de Kent como pessoas de
carne e osso, a whole story seria, de
facto, uma condição necessária para averiguarmos da sinceridade – por oposição
a fingimento - da frase referida. Mas
falamos de actores. Sabemos, ainda segundo Anscombe, que “o fingimento é um
conceito dependente de uma intenção”. Ora, onde está a intenção do actor, a não
ser entreter uma audiência sendo o mais fiel possível ao texto e encenação?
Como pode ele então fingir o que quer que seja, excepto fingir ser alguém, que
na realidade não é nem nunca será, por via da sua própria profissão?
Por outro lado, sendo que uma
acção fingida não pode ser interpretada porque não é bem uma acção, e
considerando que o actor é um fingidor, como poderemos, em bom rigor,
interpretar a sua motivação? O actor finge sempre. O Rei Lear finge? Teríamos
de saber a história completa.
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