11 outubro 2013

Largo da Boa-Hora*


Sob o sol primaveril que ilumina o largo e dá ares de talha dourada a este meu banco, pergunto-me qual o maior tesouro da nossa vida, qual o valor mais precioso que nos é concedido.
Considero e pondero, detalhada e cuidadosamente, as várias fortunas de que dispomos, e, depois de muito examinar e peneirar, consigo eleger aquela que é a riqueza superior às demais, a rainha das nossas venturas.
A primeira surpresa deste meu exercício é que não suspeitava que o elencar sistemático e exaustivo dos “activos” originasse um rol tão extenso. Fiquei surpreso com a multiplicidade de “bens” que compõem a nossa vida, assim como com a suficiência formada pelo conjunto: “tanto mar têm os nossos barcos para navegar”.
Também me impressionou quanto a riqueza material se desvaloriza no “ranking”, quando em concurso com as riquezas espirituais. A matéria é pó quando comparada com a essência, com a alma, com os sentimentos.
A rainha das venturas, é haver quem precise de nós. Não me refiro a alguém indeterminado da comunidade, mas a alguém em concreto, a que estejamos ligados por laços de amor. De igual modo, não me refiro apenas a uma pessoa, mas às pessoas que, por causa desses específicos e particulares laços de amor, formam o nosso núcleo existencial.
A grande riqueza é esta certeza, este saber convicto, de que para alguém somos contributo decisivo para o seu bem, para a viabilidade da sua felicidade, para a realização dos seus sonhos, ambições, projectos, e tudo o mais de construção de uma vida.
Do mesmo modo que para esse alguém somos bálsamo, refúgio, ajuda nas tristezas, desalentos, dores e infortúnios, acompanhando derrotas e medos, testemunhando inquietudes e angústias, suavizando remorsos e erros.
Para esse alguém somos espelho que não consente máscaras, dispensa maquilhagens e disfarces, somos procurados para reflexo da verdade, e não camarim de actor.
Para esse alguém somos parte e condição da vivência, da alegria e da tristeza.
Olhar e ver, ouvir e escutar, falar e dizer, tocar e sentir, consumam-se na partilha com esse alguém que nos precisa.
Para esse alguém somos, afinal e sempre, bordão de peregrino na romagem da vida.
Essa utilidade, necessidade, enche-nos de felicidade e encantamento, dá-nos sentido à vida, é estrela polar que marca o nosso norte e empalidece as tantas constelações celestiais que brilham, apontando outras direcções e rumos.
Servir esse alguém é vocação bastante, é missão suficiente para todo o “eu” fazer sentido, para o “eu”acontecer por uma causa e não por mera casualidade.
Sem esse alguém seriámos, provavelmente, seres erráticos, desnorteados, por não ter de quem ser bordão.
E este ser bordão é condição inesgotável, porque a cada nascer do sol se renova a oportunidade de continuar a caminhada. Há sempre um amanhã e há sempre mais caminho, até ao fim da longa jornada.
Nunca a missão está completa, nunca a vocação está saciada, regenera-se no dia-a-dia e essa continuidade é, por natureza, a fonte da tranquilidade.
Trata-se de uma dependência desejada e consentida, fruto de uma reciprocidade de eleição do bem mais precioso, com a assunção de que amar é querer ser o bordão do outro, e desejar que o outro precise que nós sejamos o seu bordão.
Muitas formas existem para definir o amor, para o demonstrar e para o viver quotidianamente.
Este texto é sobre o amor, tendo seguido uma dedução que me conduz à definição que o amor é, metaforicamente, ser eleito o bordão do outro, que é, reciprocamente, o nosso bordão.
Focando-nos agora e exclusivamente no amor entre pares (deixemos, pois, o filial, parental, fraternal, em que somos bordões por tempos ou ocasiões) três notas finais completam o quadro que quis esboçar.
A primeira, é no sentido de que, enquanto cada um se revir e sentir como bordão do outro, a relação se manterá forte, leal e segura, apesar das vicissitudes surgidas no caminho. Enquanto a mão amada me segurar como seu bordão (e vice-versa) os sulcos e obstáculos do caminho serão ultrapassados e vencidos, desaparecendo na curva do caminho.
A segunda é que a mão e o bordão vão envelhecendo e desgastando-se juntos. O que ambos perdem em qualidades de juventude ganham em conhecimento, ajeitamento e confiança, cada dia mais moldados, cada dia mais calhados; os nós das mãos conhecem os nós do bordão e sabem senti-los.
A terceira é que a jornada a dois termina, definitivamente, quando por razões que a razão desconhece, o bordão, antes amparo indispensável, se transforma em objecto inútil, empecilho de caminhadas ou estradas diferentes que se querem calcorrear ou percorrer.
Para mim basta-me esta metáfora.

ATM

(publicado originalmente em 18.03.09)

2 comentários:

Anónimo disse...

Seja bem aparecido, caro ATM!
Não posso estar mais de acordo com o seu texto. De grande qualidade, como nos habituou.
fq

Cristiana Alverca disse...

ATM.

Obrigada por voltar a escrever é sempre um prazer, sentar-nos neste Banco.

Cristiana Alverca

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