22 outubro 2013

Cartas

Retomo um tema que me é querido desde há muito: as cartas. 

Num blogue, há uns meses, alguém afirmava estar a destruir as suas cartas pessoais. Porque eram isso - pessoais - para além de intransmissíveis. E porque não queria que ninguém, após a sua morte, soubesse, lesse, tomasse conhecimento de uma parte da sua intimidade. Dos comentários ao post eu fui a ovelha ronhosa, defendendo a manutenção, em formato legível, da correspondência de cada um. E aduzi argumentos, para que não se pensasse que era do contra por desejos de saliência. Mesmo assim fiquei a sambar sozinho no meio da rua, citando uma colega brasileira. 

Grande parte das cartas revelam o que somos - ou o que fomos, num dada circunstância. São em muitos casos uma grande forma, se não a única, de nos darmos a conhecer a quem vem a seguir, e constituem, por isso, um manancial de informação não forçosamente indiscreta. São um bocado da história de cada um e, nesse sentido, um bocado da história do nosso mundo, mesmo que este seja apenas o fundo da rua que calcorreamos.

Um dias destes, alguém que me é próximo comentou estar na posse de rascunhos de cartas escritas por um familiar que já cá não está. Eram cartas pessoais que revelavam muito da pessoa que as redigira, nomeadamente preocupações relacionadas com o seu enquadramento social. Revelavam ainda alguns remorsos por opções tomadas que, em referencial nenhum do mundo civilizado, digo eu, seriam de criticar. Mas eram motivo de incómodo para quem delas falava. Eram, no fundo, cartas sensíveis, que revelavam fragilidades.

Se estes rascunhos tivessem sido destruídos (e tê-lo-iam sido, seguramente, se os acontecimentos tivessem seguido outro ritmo) não teria sido possível completar a imagem de quem partiu. Só alguém muito forte consegue reconhecer uma fraqueza. Só alguém muito grande consegue revelar o que aquela pessoa revelou. Ler os rascunhos que só por acaso não foram queimados numa lareira é completar a imagem amorosa de alguém que deixou saudades, apesar de ter morrido estatisticamente no seu tempo. Quem me falou nisso não sentiu ter invadido uma intimidade, apesar do teor das cartas. Antes pelo contrário, albergou um Homem ainda melhor no seu coração.

JdB

PS: E se as cartas fossem de um teor desagradável? Também é verdade, mas agora não me dá jeito falar nesse tema.

Fotografia de JMAC, o homem  de Azeitão


2 comentários:

Anónimo disse...

Quando a minha mãe morreu eu tive que trazer de casa dela, como muitas vezes acontece, uma quantidade de papéis; entre os papéis, uma quantidade de cartas; muitas recebidas de antigos namorados, daquelas cartas que já não se escrevem porque - suspeito eu - paixões daquelas já ninguém suscita nem ninguém sente. E outras, muitas, escritas pela mãe à minha avó, com quem havia uma ligação especialíssima.
E algumas destas cartas a minha mãe escreveu à minha avó DEPOIS da avó morrer.
Em jeito de desesperado desabafo. Sei que percebe.
E eu que toda a vida tive a imagem da minha mãe como de uma rocha, uma fortaleza de coragem, amor e bom senso, percebi num relance a profundidade verdadeiramente tremenda dessa dor, o terramoto emocional que ela sentiu quando a avó morreu e quase não a reconheci nessas cartas;
E de repente, quase sem dar por isso, comecei um sem número de contas de cabeça para perceber exactamente que idade tinha eu nessa altura, pronta a dar cabeçadas nas paredes, fustigar-me emocional e talvez até fisicamente, alguma espécie de penitência tardia e impossível por ... não ter percebido essa dor tão grande. Onde andaria eu com a cabeça que não percebi ???
Mas as minhas contas salvaram-me porque eu tinha apenas 10 anos. Sem querer, quase suspirei de alívio porque não podia ter percebido verdadeiramente.
Se não tivesse sido tão nova na altura, se de facto tivesse tido idade para perceber, o conteúdo dessas cartas teriam deixado em mim um rastro de destruição, um sentimento de culpa que já nada poderia remediar...
Percebe?
Arrumei as cartas e lá ficaram.
Tenho para mim que o passado está morto.
Sei que isto é chocante para muitos. Mas para mim é uma verdade lapalissiana.
E depois quem sabe se os nossos mortos não precisam também que nós lhes demos um sinal para ir embora?
Crazy, I know.... Mas quem sabe se enquanto os choramos, temos saudades, os pensamos, os lembramos, não estamos a prendê-los a uma dimensão que já não é a deles?
O passado é passado sob qualquer forma, carta, memórias, seja o que for.
Reter o passado é forçar o curso da vida e da morte.
Life is ALL about letting go.

JdB disse...

Anónima:
Obrigado pelo seu comentário tão valioso, que constitui food for thoughts. Não responderei aqui, nesta caixa de comentários, porque gosto de me espraiar e porque o tema me fascina: a memória, o deixar ir, o ficar com. Se conhece a minha história de vida saberá do que falo.
Um dia destes volto ao tema. Espero que nessa altura ainda ande por aqui a espreitar-nos.

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