O filme da ortodoxa judia Rama
Burshtein, «NOIVA PROMETIDA»(1), foca a relação homem-mulher numa perspectiva
invulgarmente afectiva e íntima, onde se revela muito da riqueza da psicologia
feminina, aumentada pelo idealismo e pela generosidade incrível dos 18 anos (do lado da noiva). Tudo
decorre num espaço fechado, tanto sociológica como geograficamente, distante do
nosso, mas de uma densidade humana cativante.
O mundo interior predomina e inunda todo o
ambiente. Aqui, o silêncio é a via de comunicação preferida. Diz-se apenas o
que se acredita valer mesmo a pena verbalizar. Assim acontece no momento difícil
do funeral da jovem Esther, ao dar à luz um bebé, em que os amigos e familiares
se dirigem à família enlutada com uma invocação do Antigo Testamento. Sempre a
mesma, muito positiva, a implorar luz para aquela hora escura. E a resposta é
invariavelmente ámen, confirmando que
se tenta seguir naquele trilho, tão desafiante, de continuar a confiar.
O impacto das poucas palavras trocadas é
marcante, até porque são mínimas as ocasiões de o fazer. Compreensivelmente, privilegia-se
uma comunicação subtil, frequentemente apoiada em metáforas, breves desabafos
ou orações que todos sabem citar e decifrar. Uma linguagem fortemente
encriptada, que convoca as raízes mais ancestrais de um povo onde a identidade
nacional e religiosa se entrelaçam. Claro que todo o filme acaba por ficar encriptado,
num estilo bem interpelativo.
Percebe-se que o ponto de observação é
feminino, de uma realizadora pertencente à comunidade ultra-ortodoxa de Tel
Aviv, nascida em Nova Iorque, convertida aos 25 anos e bem ciente de tudo o que diferencia aquele modus vivendi codificado, do Ocidente
secularizado. Aliás, tem-no ao pé da porta, na maioria da sociedade israelita.
O título original inglês lança-nos logo no
âmago da história de amor especialíssima, envolta em múltiplos véus
psicológicos – «Fill the Void» (preencha
a vaga). No fundo, ecoa neste relacionamento a frase do realizador de
Amélie Poulain – Jean-Pierre Jeunet: «Être cinéaste, c’est comme être
navigateur, il faut aimer la souffrance, les difficultés.»(2). Entenda-se
Jeunet sem sado-masoquismo, mas no sentido aplicável a qualquer atleta,
alpinista, artista ou activista de causas maiores, que são chamados a encarar
as dificuldades como alavanca para se superarem. Ai deles se se deixarem
esmorecer. Jeunet até vai mais longe quando fala em amar as dificuldades, bem à maneira dos que acreditam na vitória.
Embora possa soar paradoxal, resulta na perspectiva mais positiva e talvez
também a mais realista para quem queira levar até ao fim um projecto arrojado. Gandhi
frisava aos seus inúmeros seguidores o lado doloroso dos grandes combates, não
para os afugentar nem por curtir a
dor, per se, mas por a saber incontornável num percurso de vida intenso e
profundo.
A beleza suave das personagens, sobretudo das
mulheres, com um guarda-roupa irrepreensível, a qualidade da banda sonora com um
coro masculino a rezar em off, as vozes calmas, bem educadas mas firmes em
todas as conversas, o acordeão de sons antigos que a protagonista toca
maravilhosamente (nem precisa de dizer que herdou tudo aquilo da avó)
transmitindo imensa paz, os poucos gestos de afecto com abraços muito sentidos entre
amigos do mesmo sexo, os olhares comovidos que dizem tudo, as mensagens de vida
trancadas em papelinhos bem dobrados que se entregam aos amigos em momentos sensíveis,
tingem toda a trama de uma atmosfera intimista, onde se comunica através do testemunho
de vida. Nos momentos falados, há cenas especialmente eloquentes, como o
diálogo entre Shira (a protagonista) e os pais, com a câmara fixada no rosto da
filha, e as vozes graves dos adultos em off, quando lhe apresentam uma proposta
de casamento menos convencional. Em Shira tudo fala, apesar dos seus modos suaves, de olhar acutilante e respostas
telegráficas, fogosas mas pensadas.
A conversa entre ela e o cunhado, agora candidato
a noivo, são lapidares. Aliás, todas as suas saídas são antológicas. A réplica espantosa
dada a um outro possível noivo, bastante imaturo e empenhado em esclarecer o
tipo de mulher e de casa que pretendia, condensou o essencial numa única frase:
Quero uma casa e uma família verdadeiras.
Tudo simples mas exigente. Era tão sintética e certeira, até mesmo a assumir as
hesitações, que costumava deixar os seus interlocutores atordoados. Como se
tivessem apanhado com a onda em cima, atingidos por um excesso de significado.
Tudo nela era cristalino e autêntico, merecendo
um elogio rasgado do rabino, num encontro de desfecho algo imprevisto.
Uma raridade conseguir-se tal nível de intimidade num
filme repleto dos episódios contrastantes da vida da comunidade: nascimento,
noivados, casamentos, morte, cerimónias religiosas. Nisto, assemelha-se ao
grande realizador alemão do primeiro quartel do séc.XX – Murnau e, mais tarde,
a Dreyer ou Bresson, que ousaram filmar
a alma humana. Como explica Rama B., ela abre-nos uma janela para nos
deixar ver o dia-a-dia das pessoas, sem explicações pedagógicas. Considera,
aliás, que a matriz do judaísmo está na procura constante do justo equilíbrio
entre satisfazer os anseios humanos e saber esperar, ser contido no timing de realização. Um desafio à
subtileza. E concretiza na descrição do relacionamento homem-mulher,
seu tema predilecto: «The thing that really interests
me, in life and with this film, is the male-female relationship. The enigma of
intimacy. And that was an issue for us in terms of how to deal with it in the
film. How far do you go with it? (…)»(3)
Quando lhe perguntam: «It's hard to even remember that we never
see Shira and Yochay touching each other because the scenes they perform
together seem so intimate.», responde: «That’s true. That’s how
we see the enigma—the power of wanting and then restraining. The restraining is
the power. The passion cannot exist if you have it all the time—the passion is
only for something that you don’t have. You have to work to keep the passion. Judaism is all about that. »(3)
Genericamente, a segurança do grupo feminino
é a pedra de toque do argumento. Segundo Rama B., cabe a elas a escolha do
noivo, apesar das relações serem organizadas pelos pais. O caso de uma tia é
paradigmático desta semi-liberdade, pelo seu estilo divertido, desenvolto e
descomplexado, sempre bem arranjada e com saídas incisivas. Só a custo percebemos
não ter braços nem marido, porque não gostou do candidato, apesar de pertencer
a uma comunidade onde casar era a opção mais honrosa e recomendada.
O filme dá amplo espaço de interpretação ao espectador, abrindo
para múltiplas pistas de leitura, sem respostas categóricas e definitivas. Por
exemplo, no final, fica ao entendimento de cada um interpretar a aproximação
difícil entre a miúda de 18 anos e o futuro noivo viúvo, a rasar os 30. A este
respeito, a realizadora observa com graça que: «I think when you watch
films it becomes a mirror of who you are. If you’re mad
at the world, you’re going to see this film as a victim story. But if you’re
living in love and romance and passion, you’re going to see it as a love
story.»(3)
Antes de ouvirmos Rama B. em entrevistas,
intuímos que NOIVA PROMETIDA é fruto de uma longa gestação (15 anos no total; 1
ano só para a selecção do casting), tendo, ao mesmo tempo, fluído
harmoniosamente, com tranquilidade. Estreando-se aos 46 e filmando apenas como
hobby, tudo resultou hiper profissional. Basta dizer que só 2 dos actores são amadores
da comunidade ortodoxa (90% são seculares e de carreira), além de que foi
rodado com câmara digital de alta definição – uma Alexa, o que favorece muito
os múltiplos zooms às expressões das personagens. Quando Rama pensou na
história, não imaginava que chegaria a escrevê-la. Quando a escreveu, não
imaginava filmá-la. Quando desencantou financiamento e começou a filmar, não imaginava
que chegasse às salas de cinema. Quando lançou a película no mercado
internacional, não imaginava qualquer efeito. Quando embateu com o sucesso
além-fronteiras, limitou-se a viver o novo momento com o empenho e a novidade
com que as coisas lhe costumam acontecer. Desde sempre, diz. Percebe-se que
vive num diálogo de fé constante, e que é esse o fio condutor que teceu toda a
trama narrativa e desenhou a individualidade de cada personagem.
Antes de nos surpreender a nós, Rama B. foi
surpreendida pela vida. Talvez isso explique a vitalidade incrível de NOIVA
PROMETIDA – um filme q.b. difícil mas que merece o desafio.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
__________________________
(1) FICHA TÉCNICA
Título
original:
|
FILL THE VOID
|
Título traduzido
em Portugal:
|
NOIVA
PROMETIDA
|
Realização:
|
Rama Burshtein
|
Argumento:
|
Rama Burshtein
|
Produtor
|
Assaf Amir
|
Banda Sonora:
|
Yitzhak Azulay
|
Duração:
|
90 min.
|
Ano:
|
2013
|
País:
|
Israel
|
Elenco:
|
Hadas Yaron – Shira, noiva de 18 anos
Irit Sheleg – mãe de Shira,
Yiftach Klein – o cunhado
Renana Raz -
Esther, a irmã que morre
Razia Israeli - a
tia.
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Local das
filmagens:
|
Tel
Aviv
|
Site oficial:
|
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Prémios
|
7 galardões da Academia de Israel,
Prémio da Melhor Actriz para “Shira” no Festival
de Veneza.
|
(2) Entrevista
publicada no Paris Match a 10 de Outubro de 2013.
(3) Entrevista
concedida a Danny Miller, em Los Angeles, a 18 de Maio de 2013).
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