13 março 2014

Da contemplação

O que andas a fazer?
Em que estás a pensar?

Entre estas duas frases há um mundo. Há muito mais do que uma pergunta diferente. O que andas a fazer? é uma indagação possível a qualquer pessoa, sem que esteja implícita violação de intimidade ou curiosidade incómoda. Se neste preciso momento alguém me telefonasse e verbalizasse a interrogação, não teria qualquer problema com a resposta: estou a escrever um post para amanhã. Se me tivessem feito a mesma pergunta há 30 minutos, ou há duas horas, a facilidade com que responderia seria igual: estou a trabalhar ou a almoçar ou a ver televisão ou a ler ou a estudar. Do lado de lá, estou certo, haveria o contentamento do interesse satisfeito - uma pergunta óbvia, uma resposta óbvia. E se eu retorquisse que estava a pensar? Sim, se à resposta o que andas a fazer? eu respondesse, candidamente, que estava a pensar? 

Vivemos um tempo de acção: redigimos relatórios, efectuamos pagamentos, limpamos uma piscina, ataviamos um manequim na montra, cozinhamos um faisão marinado em vinho e ervas. Elaboramos agendas organizadas por blocos, com cores e horas e locais, e não deixamos espaços em branco porque isso sugere um esplendor de dispersão e ineficácia. Há que fazer, que dobrar, que pintar, que consertar. Pensar não se inscreve nos to do quotidianos, porque uma certa moral vigente o impede. Estamos cá para actuar, para deixar marcas. Pior ainda, para deixar provas, porque a ninguém ocorre que o encanto maior está nos vestígios.

Monte Ngomakurira, Zimbabwe, 31 de Agosto de 2008, 21.30h

Querermos saber em que está a pensar o outro é um movimento que não nos vem à lembrança, a não ser numa intimidade que muito compreende e perdoa, que aceita esta espécie de falta de educação ou de hábito. O pensamento é algo de muito exclusivo nosso, que sai voluntariamente, não se descobre por investigação ou perscrutação. Só sabe o que eu penso quem me conhece verdadeiramente bem, ou quem se atreve a perguntar. Só sabe o que eu penso - e não o que eu faço - quem tem um interesse no que é importante na minha vida, no que está a montante do agir, no que é um mistério, uma neblina, um luso-fusco. 

A sociedade do nosso tempo, toda feita de aldeias globais, não entende que a limitação está na criação, não na contemplação. Aquela limita a visão, esta amplia-a. Oscar Wilde, num ensaio muito interessante intitulado The critic as artist, põe o dedo numa certa ferida. E afirma (com tradução minha): "Sim, Ernesto: a vida contemplativa, a vida que tem por objectivo não fazer mas ser, e não ser simplesmente, mas tornar-se - é isto que o espírito crítico pode dar-nos."

Recuo 35 anos e lembro conversas com um amigo de então, hoje e sempre todo voltado para a acção. Nessa altura imaginávamos o diálogo (sendo que a resposta era nossa):

- Então, o que têm feito?
- Nada. Está-se; é-se.

A minha vida tem vindo a permitir uma certa contemplação. Nos tempos vagos, no paredão matinal, nos escritos, no silêncio onde apenas um pássaro canta ao fundo, desprendido de um inverno de contentamento incerto, nas conversas onde me acho ou onde me encontram. Quem me está próximo sabe a importância dessa descoberta interior, desse olhar por vezes espantado sobre um mundo forçosamente limitado. Sou um homem de sorte, no fundo, já não vergado à fatalidade da gestão por objectivos.

JdB 

5 comentários:

Anónimo disse...

"sit quietly"
O mais importante na vida.
O silêncio que não é apenas ausência de barulho; é silêncio da mente.
Outras culturas o sabem há milhares de anos. A nossa, nem por isso.
É o ponto onde os problemas se dissolvem e as perguntas perdem sentido.
Algumas pessoas com uma inteligência mais “fine tuned” conseguem - apesar do handicap que a nossa cultura barulhenta, consumista e ambiciosa nos impôs - descobrir esse ponto sem que ninguém lhes ensine nada.
Esse silêncio é paixão.
O paredão ensina infinitas maravilhas às 7 da manhã para algumas sensibilidades, mas cautela, que a viagem ao interior de nós, é um “one way ticket” e o preço a pagar é uma visão implacavelmente nítida da banalidade barulhenta que nos rodeia e a que invariavelmente chamamos de “vida real”.
v

Anónimo disse...

''sit quietly'', mesmo com o ruído da vida real a decorrer, esse one way ticket, só é one, porque é THE One.
E tem volta, ou não estaria viva, mas depois da primeira 'visita', apetece fazer outras mais. E muitas vezes não apetece, voltar.

A graça, ou o encantamento, está não na dissolução dos problemas, mas na perspectiva com que os passamos a ver, e por isso será como que se 'dissolvessem'.
Na verdade, mudamos os ângulos de visão, mudamos a percepção, mudamos (ou aumentamos) as perguntas, e aumentamos os sentidos. Os cinco básicos (mais outros), mais o(s) sentido(s) das coisas. Às vezes para perceber que 'não tem sentido' (que saibamos)e deixarmo-nos maravilhar pelo desconhecido.

Problemas sempre teremos, mesmo depois deste 'sentar em silêncio'. A forma como lidamos com cada um, essa 'get atuned, with pratice'.

A clareza da banalidade que nos rodeia, pode primeiro inquietar pelo gritante desapontamento, mas acabará por ser esmagada pela aceitação pacífica, pela descoberta abençoada do belo e sagrado, no mais comezinho e banal quotidiano. Da pedra à erva, da colher à electricidade, do sangue à estrela, ...

A contemplação 'pensante', é um bom começo. Quando menos esperar, estará a contemplar, sem formular qualquer juízo, ligação, pensamento. E mesmo que surjam, não se inquiete, deixe-os vir (são seus)... e deixe-os ir. Não se agarre, nem se prenda a eles, por eles. Volte à erva, ao rio, ao prédio, ao horizonte, (mesmo aos pensamentos) whatever.

E fique. Sem pressa de ir a lugar nenhum, de sentir o que quer que seja, de saber ou encontrar nada.

a.

Anónimo disse...

cara(o) "a.", este seu post pareceu-me uma dança de luzes.
e não se lé, bebe-se!
obrigada

v

arit netoj disse...

Que bom João!
Bem merece essa paz.
Obrigada pelo que extravasa...
Beijinhos,

Anónimo disse...

Obrigada eu, v e JdB.

um abraço colorido.
a.

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