27 março 2014

Da simplicidade


Há um bom par de anos, alguém monologava em voz alta para mim: quem me dera ir para um sítio onde eu própria não estivesse. Há bem menos tempo, outro alguém monologava em voz alta para mim: quem me dera ser mais simples

Dou por mim a pensar nestas duas histórias e em tudo o que vejo e oiço e penso e sinto. E dou por mim a pensar no que é a simplicidade - de vida, de raciocínio, de temperamento, de hábitos. A Bíblia refere-se-lhe abundantemente, começando pelo sermão da montanha. Afinal, os puros de coração ou os pobres de espírito são atravessados por esta ideia de simplicidade, assim como as crianças a quem Jesus Cristo se refere amiúde. 

Não sei se somos educados e se educamos para a simplicidade. Um feitio complexo tem, no arranque da apreciação, uma cotação superior à de um feitio simples, porque se lhe associa gente mais interessante, talvez mesmo mais inteligente, com um fascínio que veda o caminho ao enfado. Num mundo tão judaico-cristão (por vezes só o nosso pequeno mundo), esta aparente contradição acresce a um rol inesgotável. Não queremos ser simples, porque uma mente simples é entediante, pouco desafiante, oferece um diálogo inexistente de profundidade. E no entanto, é dos feitios complexos que tantas vezes nos queixamos, porque há os humores, as manias, as imprevisibilidades, o inferno que são os outros, as esquisitices, as implicações, os demónios.  

A sociedade não nos atira seguramente para a simplicidade da vida. Acumulamos bens, actividades, obsolescências, auto-imagens projectadas. Queremos ser chefes, ter isto e aquilo, carreiras invejáveis feitas de regressos tardios e ambições desmedidas; viciamo-nos no ter, no fazer, no comprar, no mostrar. Um dia paramos à porta do fim da carreira - a progressão acabou porque o lugar era para outro ou porque atingimos o limite ou porque já não interessamos; uns confrontam-se com a falência, outros com o despedimento, muitos com a crise. Tem-se menos, faz-se menos, mostra-se menos, compra-se menos. E todos nós - aqueles que foram tocados pelos zeros que minguam na conta bancária - percebem o encanto de uma vida que se tornou simples pela força da circunstância: um chá ao fim da tarde numa esplanada, o pôr do sol que se vê no regresso, a liberdade com que dizemos que não, porque o tempo não está para isso.      

O que é a simplicidade? O que é ser-se simples, um adjectivo invariável para o qual o dicionário tem mais de 15 entradas? Não sei, e talvez por isso cite Santo Agostinho quando este discorre sobre o tempo: se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não sei [...]. Talvez só dentro de nós saibamos encontrar a resposta, porque talvez só dentro de nós tenhamos percebido o que a simplicidade, nossa e a dos outros, fez por nós. Ou contra nós, que também há a inversa. 

No seu livro A Pesca à Linha - Algumas Memórias, António Alçada Baptista diz ter tido um extraordinário abalo quando soube, por um livro de António Ferro, que Salazar tinha no seu escritório o soneto de Plotin intitulado Le bonheur de ce monde:

Avoir une maison commode, propre et belle,
Un jardin tapissé d'espaliers odorants,
Des fruits, d'excellent vin, peu de train, peu d'enfants,
Posséder seule, sans bruit, une femme fidèle.

N'avoir dettes, amour, ni procès ni querelle,
Ni de partages à faire avec ses parents,
Régir tous ses desseins sur une juste modèle,
Se contenter de peu, n'espérer rien des gens.

Vivre avec franchise et sans ambition,
S'adonner sans scrupule à la devotion,
Dompter ses passions, les rendre obéissantes.

Conserver l'esprit libre et le jugement fort,
Dire son chapelet en cultivant ses entes,
C'est attendre chez-soi bien doucement la mort.


O que é a simplicidade? Não sei, e talvez nunca venha a saber o suficiente para dizer aos outros. Apenas lhe adivinho uma dimensão fascinante. Talvez seja uma busca, mais do que um destino. E este caminho não se ensina; pratica-se apenas, com um bordão de peregrino e um mapa onde está desenhado o nosso destino.

JdB   

4 comentários:

Luísa A. disse...

João, não creio que a simplicidade seja uma questão de feitio (mais ou menos complexo), mas de atitude. A simplicidade (para mim) é uma demanda. E suspeito que se estará perto dela quando se começa, realmente, a conseguir relativizar tudo, ou quase tudo. :-)

JdB disse...

Luísa.
Obrigado pelo comentário. Talvez seja mesmo isso que diz. E é, sobretudo, uma demanda.

Anónimo disse...

Penso que será nas crianças, que encontramos a manifestação mais genuína de simplicidade.

Não gosto do clichê 'pobres de espírito', ou 'puros de coração', ainda que um esteja nos antípodas do outro. Ambos depreciam ou extrapolam, exageram. No meio está sempre a virtude, o equilíbrio.
E as crianças, têm-na.

Porque não prestam contas a ninguém além de (sem saberem) a si próprias, daquilo que sentem, que gostam, que querem.
Dizem, pensam, agem, de e com o coração nas mãos, na boca, nos ouvidos, em todo o corpo.
Mesmo as que não são 'puras de coração', porque as há.
E por isso, porque não fazem relações espaciais, temporais, sociais, intelectuais, são o que são, pronto. Simplicidade pura.

Não foram (totalmente)formatadas, nem vendadas, pelos dogmas, leis, regras, clichês, que sob capas e disfarces do ego, nos levam a complicar, a 'distorcer', a realidade.

Mas vão ser. Umas mais do que outras. Uns com mais desafios do que outros, diferentes desafios.
E a demanda começa, quando uma vez formatado, o adulto toma consciência disso, da carga que carrega e complica a sua vida, e a simplifica, dá o salto quântico de aproximação àquele estado mais primordial/simples/puro de ser gente.
Vai largando lastro e ganhando altura. Ganha alturas e vê melhor, cada vez melhor.
E pode fazer a diferença na sua mente, na sua vida, e automaticamente na vida e nas relações humanas que tem.

As pequenas(grandes)coisas, são simples. Cabe a cada um, na sua própria demanda como bem diz, reconhecê-las, persegui-las, adotá-las, conquistá-las, vivê-las.

a.

LA disse...

Gostei imenso do tema e talvez lhe pegue sob o ponto de vista astro. Nao percebo porque e' que o AAB teve um abalo pois o soneto descreve o mundo do Salazar - meio monastico, sem preocupacaoes materiais e a explorar a tal mulher sem existencia propria... pouco mais do que um bibelot, vem a seguir a' casa, ao jardim, vinho, fruta...

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