Fotografia tirada da Internet |
Maria gostava de sentir-se uma mulher disponível mas Manuel, o seu marido, apreciava-lhe sobretudo a capacidade organizativa;
Joaquim gostava de sentir-se um líder nato mas Marta, a sua mulher, apreciava-lhe sobretudo o sentido de humor;
Carlos gostava de sentir-se um homem generoso mas Francisco, um amigo de longa data, apreciava-lhe sobretudo a inteligência;
Isabel gostava de sentir-se uma mulher muito despachada mas Joana, uma amiga de longa data, apreciava-lhe sobretudo a independência.
Etc.
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Atentamos nestas condições iniciais, que poderiam replicar-se quase até ao infinito de possibilidades, e desconfiamos que La Palice não diria melhor. Olhamos para dentro de nós e orgulhamo-nos de algumas qualidades; os outros olham para dentro de nós e apreciam algumas qualidades. Num mundo perfeito, redondo sem achatamento dos pólos, as qualidades que mais apreciamos em nós coincidiriam com as qualidades que os outros mais apreciam em nós. Isto é, haveria uma concordância total. A disponibilidade de Maria seria apreciada pelo Manuel, a liderança de Joaquim apreciada pela Marta, e assim sucessivamente. Ora, acontece que esta perfeição do mundo é uma inexistência. Felizmente, estou em crer.
As nossas relações afectivas (e excluo destas lucubrações as relações filiais ou fraternas) têm uma componente egoísta. Parece-me isto de uma verdade indesmentível. Passe a estranheza ou improbabilidade de algumas relações, o facto é que nos relacionamos (genericamente falando) com as pessoas com quem temos afinidades - sociais, de objectivos, de educação, de feitio. Quando olhamos para o nosso cônjuge ou para os nossos amigos mais próximos, apreciamos as qualidades que nos dão prazer ou jeito, independentemente da miríade de outras virtudes que a pessoa possa ter. Não amamos incondicionalmente, sem critério, altruisticamente, numa generosidade de santo. É óbvio que Manuel olha para Maria e reconhece-lhe a disponibilidade, como Joana olha para Isabel e reconhece-lhe o despacho. Mas, no fundo, apreciam principalmente a capacidade organizativa e a independência, porque lhes dá jeito, porque os seus interiores privilegiam isto em detrimento daquilo.
Há um certo egoísmo na forma como amamos. A questão em apreço é esta: quanto de egoísmo pomos no modo de amar? Cada um de nós quer sentir-se especial e único face ao amigo mais próximo, ao cônjuge com quem partilha a vida. Ora, para isto acontecer, Marta tem de apreciar, sobretudo, a liderança nata de Joaquim, e Francisco de apreciar, também sobretudo, a generosidade de Carlos. Qual é a probabilidade disto acontecer numa relação afectiva? Não faço a menor ideia. O que acontece é que, frequentemente, valorizamos no outro qualidades às quais ele dá importância diminuta, sendo que a inversa também é verdadeira. É errado? Não. Talvez seja apenas maçador, e isso, numa relação, pode ser fonte de frustração, de um certo tédio de morte.
Alguém de quem sou muito amigo dizia - e já o repeti aqui - que das frases que mais a irritava no próximo era a singeleza com que algumas pessoas afirmavam: eu só quero ser feliz. Proferiam-no revirando os olhos da alma ao advérbio, como se a felicidade tivesse a simplicidade de um gelado, e o maldito destino se entretivesse a destruir esse desfrute a que todos teríamos obsessivamente direito, como o cidadão o tem ao serviço nacional de saúde.
JdB
2 comentários:
O cerne é quase em tudo a gestāo das expectativas, mais um exemplo brilhantemente apresentado.
O melhor que o outro reconhece nāo coincide com o que eu me atribuo, o primeiro é constataçāo, o segundo ambiçāo.
Nas relações interpessoais, a apreciação do outro, realça muita vezes a qualidade que lhe vemos ou atribuímos, que mais admiramos, porque é aquela que normalmente nos faz falta, que sentimos não possuir e desejaríamos ter. Isso chama-nos atenção e inconscientemente atrai-nos, seduz-nos.
Não lhe chamo egoísmo, a esta espécie de apropriação indireta da parte que nos falta, da parte que sentimos ser importante e à qual não acedemos (ainda). Vejo-o se calhar como uma utopia, não no sentido da impossibilidade de ser alcançada, mas pelo contrário, 'a cenoura' que balança.
Mas isso, depende da(minha)perspectiva otimista e positiva, de ver. E depende da consciência que tenho das minhas limitações.
Alargar essas limitações, isto é alargar os meus próprios limites, com as apetências que vou conseguindo, com o dedicação=esforço e persistência, naquilo que sinto me faz diferença, para a qualidade da minha vida. Experimentar sair aos poucos das zonas de conforto onde me movo e vivenciar, além delas. É surpreendente e enriquecedor.
Não procurar no outro (tudo aquilo que me falta), mas em mim mesmo.
E ter a generosidade de (me)aceitar quando não dá mesmo para ir mais além. E tentar perceber de que outras formas poderei vivenciar (em mim) aquilo que procuro.
Quando li o seu texto, lembrei-me do filme Avatar, e da frase: 'I See You'.
Esta pequena afirmação, diz-me muito. Ao invés do 'Eu amo-te' (ou qualquer outra versão), olhar nos olhos de alguém e dizer ''Eu vejo-te'', implica olhar e ver o outro (não como eu gostaria que ele fosse, a parte que me faz falta ser) mas de facto como ele verdadeiramente é.
E ver alguém como ela é, implica sempre a aceitação integral de TUDO o que ela é, mesmo aquilo que nós não gostamos ou preferíamos que essa pessoa não tivesse/fosse.(Amor)
Custa? Claro, daí o desafio.
O desafio é também encontrar a simplicidade e o gosto de vários 'gelados' ao longo do dia, sem precisar ou exigir que seja esta ou aquela pessoa a 'servi-lo'.
E esse gelado, todos temos acesso e direito.
a.
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