Em palco e a contar
estórias, os brasileiros fazem a diferença. Comunicar é com eles.
A recente readaptação ao
cinema do livro de José Mauro de Vasconcelos «MEU PÉ DE LARANJA LIMA»(1) por outro brasileiro, Marcos Bernstein, deu num
filme bem gostoso, que é um hino à amizade.
A mais improvável, entre uma criança de 6 anos, paupérrima e um português com
idade de avô, radicado no Brasil profundo.
Sem ser uma obra-prima da
Sétima Arte, oferece-nos uma visão espantosa sobre os efeitos do bom
entendimento entre seres humanos, capaz de curar as feridas de alma mais fundas.
Inclusive de dissipar a tentação de pôr fim a uma existência próxima do insuportável.
O ponto de observação é insuspeito pois baseia-se na perspectiva da vítima – a
criança através de quem nos chega um mundo perpassado pelo olhar infantil. Autobiográfico
e intencionalmente subjectivo.
A história do menino
pobre, do interior do subcontinente sul-americano, filho de pai desempregado e
de mãe ausente, a trabalhar para uma família numerosa que sobrevive a custo, tinge-se
da imaginação fulgurante de um miúdo vadio,
que nos vai desfiando as memórias agridoces de uma infância dificílima, onde
alguns bons encontros fizeram tudo valer a pena. Por isso, a memória daquele
passado merece ser partilhada. Zezé escreve relembrando as boas pessoas, ou os bons
momentos de pessoas, quando estava à mercê de adultos severos e violentos. É
uma questão de lealdade e, em boa verdade, até terão acabado por ser quase todos,
nalgum instante, ainda que breve. Escreve homenageando os que lhe fizeram bem e
lhe incutiram esperança no meio da espessa escuridão diária. Escreve agradecido
aos amigos, sobretudo ao que lhe abriu o futuro, quando o presente lhe soava a triste
e insustentável. Desse, guardou a caneta dourada, o melhor símbolo do que a
vida lhe reservaria.
A sua criatividade
transbordante permitia-lhe evadir-se do ambiente feio e desfalcado onde morava.
Sonhando acordado, Zezé acrescentava ao seu dia-a-dia sombrio uma segunda
existência, vivida com tal entusiasmo e realismo que, nalgumas ocasiões, terá
sido bem feliz, entretido nas cavalgadas do puro-sangue que o ramo mais robusto
de seu pé de laranja lima lhe sugeria, ou nas explorações ao resort selvagem que
a caniçada tropical das traseiras do seu casebre lhe inspirava, ou nos voos
rasantes que o planador desenhado na areia das redondezas lhe proporcionava,
co-pilotado pelo irmão mais novo.
O lado censurado do seu
temperamento riquíssimo pagava-o bem caro, como rapazinho indomável, sempre a
magicar novas tropelias. Exasperante, a mania de armar em campeão dos disparates,
forjados pelas suas grandes qualidades. Muito irónico que tantas aptidões se voltassem
contra ele, convertendo-o no provocador-mor da família. Era especialmente
penalizado pela nobreza de carácter, em estado cru e exacerbado pela tenra
idade, a resultar numa afronta constante a um pai depressivo e enredado numa revolta
surda. Bem nos antípodas do pobre do Zezé, que de tudo sabia fazer uma festa e
até ganhar uns trocos.
Era bem rápido a meter-se
em sarilhos, mas também q.b. inventivo para alterar as circunstâncias (as possíveis)
a seu favor. Não precisou de aulas de marketing para vender os CD passadistas
do cantor da velha carripana. Nem de frequentar academias militares para nunca
se furtar às adversidades, dando sempre luta. Até demais! Nem de aulas de psicologia
para perceber que não estaria preparado para a despedida tão comovida do avô –
o único adulto da família com quem se conseguia entender – descobrindo maneira
de abreviar aquela hora difícil. Nem de aulas de civilidade para saber agradar
à professora que os outros ignoravam mas a quem estava híper agradecido, pois geria
a única actividade onde a sua cabeça fervilhante de ideias – das boas às
asneirentas – encontrava interesse e potencial para progredir.
Quis repor a injustiça, a seus olhos, de ser a
única mestre
com a jarra sempre vazia, em cima da secretária.
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Para os mais velhos,
sobretudo para uma certa autoridade clássica, Zezé tinha um temperamento mal
calibrado, com excesso de potência e clara falta de freios para conseguir crescer
positivamente sem castrar a sua natureza exuberante e desafiadora. No fundo,
carente de interlocutores! Dotado de uma imaginação sem barreiras, apanhava-se impreparado
(aos 6 anos) para o contexto áspero que lhe calhara em sorte. Agravado por uma
coragem desmedida. Mais uma inteligência arguta mas sem os filtros da experiência,
que só o tempo proporciona. Ou uma audácia perigosamente inflacionada pela
falta de realismo. Nem o coração de ouro servia de contrapeso, a tal ponto
estava camuflado pela catadupa de asneiras em que se tinha especializado,
viciado em curtir a vida de cara levantada e sem se privar de nada. Até a avidez
pela aventura atiravam-no para perigos tremendos. Ultrapassava sistematicamente
os limites, pois nunca os concebera como sinalizações saudáveis da faceta benigna
da realidade, protecções vitais contra os espinhos! E eram tantos.
Só o amigo, bastante mais
velho, o fez descobrir este segredo inacessível aos pequeninos, que detectar no
grande mapa da vida os caminhos seguros, identificando com rigor as bermas e
demais paisagem onde tudo pode correr mal, não tolhe a liberdade. Antes a
amplia e viabiliza! Mas apenas numa voz Amiga se pode reconhecer autoridade
para dar corpo a uma mensagem de aparência desinteressante, que uma criança aceitará
por extrema confiança, sem idade para a perceber. Um desafio afectivo,
portanto. Para um coração imenso como o de Zezé, só uma amizade à escala
poderia responder-lhe. E respondeu, num jorro de bondade de quem menos
esperava.
O primeiro embate entre
os dois foi péssimo, pois o colegial teve o topete de saltar para o pára-choques
do carro lindo do português, sujeitando-se depois a uma tareia em frente aos
colegas. Claro que ficaram inimigos! P’ra sempre, garantiu o patifezinho, com ameaças
de vingança feroz. Valeu que o português não era de rancores e fez questão em
dar boleia ao insubmisso, quando o viu a coxear a caminho da escola. A custo, o
miúdo rendeu-se à insistência de Manoel Valadares, apesar de não ser menino para
se deixar comprar por boleias no bólide mais fantástico das redondezas. Nem
mesmo arrastando um pé ferido. Mas felizmente que cedeu e desistiu da inimizade
a que se votara, permitindo que nascesse ali uma relação maravilhosa, ainda que
curta (mas marcante, como o prova esta narrativa), pois a vida também prega partidas.
Até por ser fugaz. Arriscadíssimo deixar para amanhã…
O Citroën Traction Avant é o célebre modelo
fabricado entre
1934 e 1957, na
vanguarda tecnológica, já com tração dianteira
e carroceria em monobloco,
depois muito popularizadas.
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A riqueza afectiva do
pequeno contador de histórias pontua a sua biografia, desde que nos aparece no
ecrã, a peregrinar até a uma capela a quilómetros de sua casa, para negociar
com Deus o aliviar da indigência da família, de sabor mais amargo num Natal sem
presentes. Para a árvore-arbusto que ficou ao seu cuidado – o pé de laranja
lima – desencantou um nome único «Minguinho», passando longas horas à sombra da
folhagem rala e desproporcionada, sonhando e desabafando. Ao mano mais novo,
que o seguia com enorme devoção, fazia as confidências mais luminosas, acabando
por lhe passar o passarinho amoroso que guardava no peito – um presente valiosíssimo.
À irmã que o tentava proteger da violência que todos lhe granjeavam, em casa,
cansados das suas travessuras, dava conselhos de adulto para a ajudar a
crescer, esclarecendo que as suas viagens magníficas eram pura fantasia. Mas o
melhor de Zezé despontou com a paternidade do Portuga, ao ritmo da cumplicidade que se estabeleceu entre os dois.
É tocante a facilidade e
felicidade com que um insubmisso se deixa conduzir por Manoel – como se fosse
dócil (afinal sabia ser) – sentindo-se protegido e inspirado pela ternura que
aquele avô tinha por si. Estimulado
para dar o máximo, mostrou-se incrivelmente sociável, até com graúdos,
incansável em tudo, de uma honestidade desconcertante, mesmo que o desfavorecesse.
A boa sintonia entre um e outro, percebendo-se quanto Zezé se sentia amado e
único, produziu um milagre (como sempre!) na difícil, agora fácil, educação de
um fedelho rebelde. Nem um
mal-entendido sequer turvou a relação com o recém-desconhecido, apesar de ser
pão de cada dia, em casa, onde era suposto conhecerem-no desde bebé. Misterioso
e significativo, tanto mais que o português lhe punha limites, embora com subtileza
e modos meigos, tornando evidentes as boas intenções que o animavam.
De facto, transfiguradora
a amizade que motivou Zezé a acompanhar as passadas de maturidade do crescido,
dando saltos de leão, até nos modos, à mesa, como brincava Manoel. Tempo para
estar juntos revelou-se no maior antídoto contra o sofrimento brutal a que o
pequenino estava sujeito. A ponto de se ter tornado no melhor passatempo do
rapaz crescer com e ao lado de um adulto.
Se dúvidas tivéssemos sobre
o alcance do Amor, a experiência de Mauro de Vasconcelos seria eloquente, até
por testemunhar, na primeira pessoa, a alegria imensa que aquela afeição lhe trouxera.
Mudara-o para sempre! Repercutiu-se, inclusive, nos pais, que intuíram a urgência
em corrigir a maneira de lidar com o filho. Percebe-se por que é considerado a grande
prioridade no desenvolvimento e na realização do ser humano, desde o primeiro
minuto. O desafio está em conseguir ser-se o Manoel para um Zezé, ou
vice-versa. Isto não vai lá sem o “sim” de cada um, pois só cada um pode escolher
fazer a diferença.
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA do filme, inspirado na obra
homónima de José Mauro de Vasconcelos, publicado em 1968 e dos maiores sucessos
de venda no seu país:
Título
original:
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MEU PÉ DE LARANJA LIMA
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Título traduzido
em Portugal:
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MEU PÈ DE LARANJA LIMA
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Realização:
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Marcos Bernstein
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Argumento:
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Marcos Bernstein e Melanie Dimantas
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Produzido por:
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Katia Machado
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Produção:
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Passaro Films
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Fotografia:
|
Gustavo Hadba, ABC
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Banda Sonora:
|
Música original de Armand Amar
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Duração:
|
99 min.
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Ano:
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2012
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País:
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Brasil
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Elenco:
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João Guilherme Ávila (o Zéze)
José de Abreu (o Portuga)
Eduardo Dascar (o pai)
Fernanda Vianna (a mãe)
Caco Ciocler (José Mauro de Vasconcelos)
Eduardo Dascar (Paulo Vasconcelos)
Pedro Vale (Totoca)
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Local das filmagens:
|
Brasil:
zona da Mata Mineira, cidade de Leopoldina.
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