30 abril 2014

Dos acasos

Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão

Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos do acaso... mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza”.
(Milan Kundera in A Insustentável Leveza do Ser)
***
Em 1754, o inglês Horace Walpole escrevia The Three Princes of Serendip, uma história baseada num conto infantil persa. Três príncipes do Ceilão fazem constantemente descobertas inesperadas cujos resultados, na realidade, não procuravam. Com isso encontravam acidentalmente a solução para dilemas impensados. Nasceu aqui a palavra serendipidade (do inglês serendipity) que o dicionário define como característica de quem faz boas descobertas por acaso ou atrai o acontecimento de coisas favoráveis

Pego nas Confissões. Em VIII, XII, 28, Santo Agostinho fala da sua conversão. Cito: Dizia isto e chorava com a contrição amaríssima do meu coração. E eis que ouço uma voz vinda da casa ao lado, como o canto de alguém, não sei se menino ou menina, que dizia e repetia muitas vezes: “Toma, lê, toma, lê.” Agostinho pega no códice do Apóstolo e lê o que os seus olhos viram em primeiro lugar: Nem em comezainas e bebedeiras, nem em libertinagem e dissoluções... (Romanos, 13:13-14). A vida do bispo de Hipona e doutor da Igreja estava traçada. 

Que relação temos nós com os acasos da vida? Que encantos lhes descortinamos ou, mais arrojadamente, como os enquadramos nós na nossa forma de viver? Tudo o que nos acontece afortunadamente é sorte e cálculo de probabilidades? Ou há momentos na nossa vida em que nos apercebemos de uma profusão maior de acasos favoráveis - a que Jung chamava sincronicidades? 

A minha resposta é a minha convicção. Atribui-se a Einstein a frase: a coincidência é a forma que Deus tem de permanecer anónimo. Olho para trás, para a publicação do meu único livro (em co-autoria com a Rita Jonet). Tudo – mas rigorosamente tudo – envolvido na publicação do Deus pregou-me uma partida é uma sucessão tremenda de acasos que se conjugaram para que o livro visse a luz do dia e tocasse alguma pessoas. Sorte? Cito ainda Einstein: Deus não joga aos dados. 

Gosto de encontrar acasos na minha vida: saber que foi determinante para a minha caminhada ter estado em tal sítio a tal hora; perceber que de um encontro fortuito se fazem amizades estruturantes; encontrar um livro que se leu dez anos antes e cuja importância decisiva para vencer um desgosto profundo só agora se descortina; cruzar-me com uma frase e perceber que ela limpa a minha mente de dúvidas ou erros; encontrar relações acidentais entre datas, locais, pessoas; ouvir uma música inesperada num momento de turbulência e realizar que ela me leva para uma memória que é um refúgio. 

Sou um homem feliz porque tenho muitos acasos, ou a felicidade advém de os conseguir encontrar na minha vida? 

Os que faziam do latim a sua língua chamavam-lhe apertio libri – abertura do livro.  Os antigos faziam-no com os textos de Homero ou de Virgílio – textos pagãos: abriam ao acaso e liam uma frase para discorrerem qualquer coisa. A expressão sortilégio – escolha de sortes – vem daí. Santo Agostinho fez a sortes sanctorum, porque procurou o seu caminho num texto bíblico. A nós, que não somos santos nem muito antigos nem escrevemos em latim, resta-nos olhar para a vida e para a beleza dos acasos favoráveis. Talvez, porque não, pensar no riso de Deus por trás do seu aparente anonimato... 

JdB

8 comentários:

LA disse...

Bom dia JdB, nao sei de onde vem a felicidade mas a abertura de espirito para reconhecer os "acasos" e assim as intencoes que Deus ou o Universo tem para no's enriquece a vida e assim contribui para a felicidade. Obrigada pelo momento filosofico matinal!

Luísa A. disse...

Um dos mais interessantes jogos da vida é fazer ordem onde existe caos e atribuir um fio condutor, uma lógica, ao que acontece (ou parece acontecer) por acaso. E muitas vezes, durante o jogo, penso no riso de Deus, porque lhe adivinho um toque de malícia.

Anónimo disse...

Essa frase dos dados de Einstein (e outra parecida "I like to think that the moon is there even if I am not looking at it") foi proferida no âmbito do debate científico da altura em torno da física quântica, cuja aparente aleatoriedade o incomodava bastante. De resto esse debate tem continuado, com a mecânica quântica a ganhar cada vez mais terreno em relação à mecânica clássica. Talvez o JDB se pudesse debruçar um bocado sobre esta matéria (a mecânica quântica) se lhe for possível, e enquanto leigo claro, porque, uma vez ultrapassada a primeira barreira de termos meio incompreensíveis, se persistir um pouco, o que se lhe irá revelar (mas apenas como a ponta do iceberg…) é uma realidade que poderá explicar, no futuro (e estou convicta que o fará), muitíssimas questões como a que propõe neste post e que, neste momento relevam apenas do domínio da metafísica, filosofia, religião etc. Sincronicidade, retrocausalidade, telepatia, etc. Um sem número de fenómenos que para nós, neste momento da história do pensamento humano são apenas teorias meio excêntricas mas que, creio, não estarão longe de ter uma explicação.
Nesta área, também, se um dia tiver curiosidade, veja a teoria do "implicate order" de David Bohm, outro dos baluartes da mecânica quântica.
Eu acho que não se vai arrepender do trabalho e esforço investido nesta área: estamos na alvorada de uma nova era para a ciência. Desejavelmente, e se os interesses económicos que costuma ditar o rumo que a ciência tem de seguir o permitirem, num futuro talvez não próximo, mas seguramente não muito distante, assistiremos à uma confluência entre a ciência e a metafísica, porque, afinal de contas, ambas tratam de explicar a mesma realidade por caminhos diferentes e não faz sentido que continuem de costas voltadas.
v

arit netoj disse...

O Príncipe de Serendip volta a falar de acasos, sincronicidades,serendipismo...
É muito bom atualizarmos e relembrarmos estes temas para não esquecermos de procurar o sentido das nossas vidas.
Obrigada e beijinhos

LA disse...

Mensagem tb para o anomino que cita David Bohm implicate and explicate order. Palavras de oura para a astrologa. Cito de uma conferencia
" "Energy enfolds matter and
meaning, while matter enfolds energy and meaning." (When you
hear this word enfold, think of the ink drops disappearing into
the glycerin.) "But also, meaning enfolds both matter and
energy. So each of these three basic notions enfolds the other
two."
Here Bohm is proposing a kind of interpenetration of matter,
energy, and meaning. He goes on to say, "This implies in
contrast to the usual view, that meaning is an inherent and
essential part of our overall reality, and it is not merely a
purely abstract ethereal quality having its existence only in
the mind, or to put it differently, in human life. Quite
generally, meaning is being. In a way, we could say that we are
the totality of our meanings."

LA disse...

A conferencia foi proferida por Will Keepin, Ph. D. que escreveu a biografia de Bohm.

Anónimo disse...

Agradeço a tod@s. Ao autor do blog ela belíssima partilha, aos comentadores por a complementarem, mencionando a nossa essência energética que pressente e ressoa em sintonias universais. Realidade há muuuito enunciada pelas filosofias orientais a que só agora a ciência aflora.
Boas serendipidades e ressonâncias.
MJ

Anónimo disse...

A Vida está constantemente a dar-nos dicas, a querer dar-nos sinais, pistas para juntarmos ao enorme puzzle. Piscar de olhos, cúmplices.
Estando atentos, disponíveis e receptivos a eles, estamos abertos e melhor podemos jogar com os dados que o Universo propõe.
Pelo meio, vamos percebendo que a palavra aleatório ou acaso, 'não existe'...
A consciência desperta, revela-nos momentos especiais e sincronicidades, oportunidades de ir a jogo, de escolher participar, ou só ficar a ver. Qualquer uma das opções, pode ser interessante, dependendo das circunstâncias.
Em qualquer uma, é importante a forma como o fazemos, como está o nosso coração na jogada, se jogamos limpo, ou não.

Que não n@s faltem 'acasos'!

a.

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