06 novembro 2014

Largo da Boa-Hora (republicado)

Encontro, na minha ronda de blogues, versos poderosos: when the tears of a whole generation are assembled / they will only fill a coffeee cup. E depois cruzo-me com este texto do meu querido amigo ATM, publicado neste estabelecimento em 9 de Março de 2009. Muitas coisas fazem então sentido.

JdB

***  

Certos dias, sabe-se lá porquê, quando neste meu banco me deixo, entorpeço a razão e acontece escorrerem lágrimas. Choro.
Primeiro, vejo cair na pedra alva da calçada o tímido gotejar lacrimoso, e depois, num ápice, sigo então espantado o meu pranto que se vai avolumando e derramando para o sumidouro público que a toda a calçada serve.
São catadupas de gotas que, impregnadas de mim, caem para o chão indiferente, o qual, não distinguindo as lágrimas da alma do que é chuva dos céus, me protege e acolhe, recolhendo todas no mesmo anonimato da sarjeta, que é vala comum do temporal que vai passando, seja ele humano ou da natureza.
Nestes momentos, o limite da minha auto-repressão é um colocar de mão sobre os olhos, apenas com medo que a possível devassa alheia que possa pressentir, me coíba de ir até ao fim, até ao soluçar, que é o sinal de estar então de facto a chorar, e não a controlar a expressão de mim que tem vontade e direito de acontecer.
Com essas mãos, escondo-me com medo que a vista dos outros me impeça de chorar, por meu pudor ou vergonha, e não porque lute contra esse avassalar de emoções que as lágrimas, magistralmente, unificam e glorificam.
A lágrima é a manifestação maior, mais completa, mais perfeita da sensibilidade humana. A lágrima distingue o ser humano de qualquer outra criação, é a máxima expressão da alma, da essência do ser, do sopro da vida.
No mesmo sentido, o chorar também é um acto de humildade, de reconhecimento da fragilidade e impotência de cada um para o imenso oceano que é a vida, os seus mistérios e voltas.
Chora-se por desgosto, tristeza, infelicidade, incompreensão, vergonha, medo, saudade, frustração, injustiça, raiva, piedade, emoção e até alegria, e por tantas outras razões extremas. Mas, todas estas causas concorrem e despoletam um mesmo processo que vai gerar esse acontecimento singular e único do ser humano.
Na sua modalidade mais extrema e, por isso, mais discreta, silenciosa e oculta, existe o mais pungente dos prantos, que é o dos vencidos da vida, aqueles a quem a desgraça do presente não é sequer mitigada pela esperança do amanhã, e que se limitam a cumprir um calendário de existência coincidente com o tempo de sobrevivência, a qual os próprios, aliás, já não querem.
Na verdade, qualquer daquelas causas, no momento e circunstâncias particulares de cada um, vai esbatendo, esgotando, exaurindo os sistemas de autocontrolo, disfarce, contenção, educação, circunstância, conveniência e demais auto-reguladores, vencendo cada um, até que ganha a emocionalidade e a lágrima acontece.
O choro é, pois, o resultado da acção da emoção/comoção sobre os mecanismos de autocontrolo, de apresentação e representação públicas, que ensinam à repressão, à contenção, à discrição.
Mas, em todos os casos, trata-se sempre de uma vitória do humano sobre a convenção e, por isso, merece o maior respeito e carinho.
Efectivamente, cada lágrima vertida é uma revelação da pessoa humana, é uma vitória da essência sobre a imagem, é uma confissão da condição humana, é um reconhecimento da limitação, é uma nudez.
Com as variações próprias das sensibilidades de cada um, todos fomos mecanizados para criar um dique às emoções que nos contenha as lágrimas que teimam em ser. Quando elas extravasam é sinal que o rio corre, a verdade acontece, o ser humano é livre e foi devolvido à sua condição sensível, permeável aos sentidos e sentimentos, vulnerável a si e aos outros, ao passado, presente e futuro. Isto é, autêntico.
Cada lágrima é um resgate, cada pranto uma salvação.
Há muito que aprendi a lidar com o meu direito ao choro e, por isso, o intróito desta crónica, que pode ter espantado dado eu ser alegre e optimista, esperançoso e “forte”. Mas é precisamente por isso tudo que choro, sem medos e sem vergonha, quando tenho saudades do imenso perdido, ou medo do imenso que posso perder.
Choro no exercício pleno do meu direito a ser filho, irmão, marido, pai, tio, amigo; choro quando tanto depende de tão pouco, e quando já perdi ou perigo tanto por tão pouco.
Agora, se consegui aceitação para a naturalidade da lágrima, sofrida e dorida, vertida pela causa que for, sem mistérios, receios ou vergonhas, queria sair do isolamento do “eu” para o campo relacional, deixando o meu modo de ver as coisas.
Tenho por mim que na vida, entre outros, há uma tristeza capital e um pecado capital.
A tristeza capital é não se chorar sozinho por opção, por vontade própria. Ou seja, não ter quem nos colha as lágrimas no ombro e afago, numa das partilhas maiores que é o consolo. Pobre não é quem nada tem de material. Pobre é quem não tem consolo para o seu pranto, um ombro, um abraço, um afago, uma ternura. A maior e verdadeira solidão não é estar só, é chorar só.
O pecado capital é não merecer, não recolher com desvelo, carinho e consolo a lágrima que alguém nos confiou. O mais rico não é quem tem muitos bens, é aquele que foi eleito para lhe confiarem as suas lágrimas.

ATM

2 comentários:

Anónimo disse...

ATM, desaparecido porque perdido em combate, ou porque ganho no combate ? Lutemos sempre para não sermos nem tristeza capital nem pecado capital ?

ACC disse...

Gostava que ATM escrevesses sobre os que não choram.
Podemos classificá-los redutoramente de durões ou incapazes. Uns porque de facto o sofrimento lhes é estranho, outro porque nunca aprenderam ou lhes foi permitido chorar. ATM encontraria outras categorias e são essas que mas me desafiariam.
Iniciemos então a busca do ATM perdido.

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