24 agosto 2015

Vai um gin do Peter’s?

No Verão, o país parece desabar para Sul, com a avalanche de gente a caminho das praias e das noites quentes do Algarve. Vá lá não se afundar junto à Via do Infante.

Bem sabemos que há praias lindas por toda a orla atlântica, até ao Minho, mas não o clima cálido, quase africano da costa algarvia. De facto, à parte dos ventos violentos na Ponta de Sagres onde a cor do mar toma o azul forte e solene do Norte, tudo o mais é suave, turquesa e sem nortadas. Por isso, o Norte fica bastante despovoado e disponível para receber os visitantes, que ali têm muito para explorar. 

Primeiro palmarés nortenho: juntando o gozo de percorrer caminhos por entre paisagens de sonho, com sítios simpáticos para comer e dormir, a melhor estrada do mundo soma tudo isso e é portuguesa, segundo o estudo levado a cabo por especialistas estrangeiros para a Avis-rent-a-car. Num universo de milhares de troços candidatos ao prémio, nos quatro cantos do planeta, a Estrada Nacional 222 ganhou confortavelmente, exibindo valores que rasaram a correlação de curvas e retas considerada ideal pelos ditos especialistas. 

Dicas dos condutores experimentados para guiar na N222: «Esta zona é mais
segundas, terceiras, terceiras, segundas, mais travão do que segunda…»

A pequena estrada que liga o Peso da Régua ao Pinhão, serpenteando o curso aos ziguezagues pelas margens do Douro, cumpriu os requisitos da fórmula matemática criada por um trio de sábios para definir um critério de selecção objectivo e quantificável. A tal matriz determina o melhor tempo entre retas e curvas, além de incorporar benefícios extra como a envolvente natural. Assim, a estrada que dará mais gozo guiar deverá ter um rácio de 10:1, o que corresponde a dez segundos a direito para cada segundo a curvar, de modo a proporcionar a aceleração ideal para reta de tamanho certo e depois entrar na curva em U acentuado e relevée correcto. Ora, a N222 tem a proporção mais próxima do desejável, atingindo o 11:1. Facilmente, ganhou o galardão de World Best Driving Road, entre as muitas candidatas, com as medalhas de prata e de bronze a boa distância: a Big Sur na Califórnia chegou aos 8,5:1, e a A535 no Reino Unido ficou-se nos 8,4:1.

O próprio trânsito de camiões a circularem na N222 e a aparecer
ao virar de curvas apertadíssimas, aumenta o frisson da viagem. 

O júri reunia gente batida nestas lides. Assim, incluía um ex-piloto de Fórmula 1, que depois enveredou pela engenharia civil e a arquitectura, sendo o responsável pelo traçado das pistas de F1 dos últimos 20 anos – Hermann Tilke. 

O segundo era o designer de troços radicais, autor de montanhas russas famosas, como as britânicas Nemesis e Oblivion, em Alto Towers– John Wardley. Compreensivelmente, colaborou também nos efeitos especiais de 5 dos filmes do 007. Na sua opinião, uma boa estrada deve suscitar múltiplas sensações, da emoção à intimidação, com um ritmo variado de retas e curvas, proporcionando também uma experiência entusiasmante  e memorável, que divirta. Basta as vistas soberbas após cada ziguezague na N222, entre os socalcos de vinhas e o rio, para tirar o fôlego ao mais desatento. 

Segundo Hadley: «Embora este índice tenha uma base científica, depois das minhas experiências com Hermann e John, tornou-se claro que as emoções e as paisagens
foram factores essenciais. (…) É por isso que acreditamos que a melhor estrada
do mundo para conduzir é em Portugal – a Estrada Nacional 222»

O trio era completado por um físico quântico britânico – Mark Hadley, que esteve no arranque do estudo. Sobre a escolha tão renhidas entre tantos candidatos, explicou «O processo foi bastante exaustivo: em primeiro lugar aplicámos alguns conhecimentos físicos a uma ampla variedade de modelos de estrada. Posteriormente consultámos e envolvemos uma série de especialistas notáveis em diferentes áreas, inclusive Hermann Tilke e John Wardley (do júri), que ajudaram a refinar e testar este índice. Por fim, mapeámos meticulosamente estradas por todo o mundo com estes parâmetros rigorosos, de forma a identificar a melhor estrada para conduzir». 

Património Mundial da Unesco, o Douro continua em crescendo, com as suas quintas a oferecerem provas de vinho de grande qualidade, miradouros estratégicos a pontuar a galardoada Estrada Nacional, pontezinhas antigas, algumas do tempo dos romanos, uma estação de comboios em Pinhão revestida a azulejaria portuguesa, e todo o ambiente nostálgico da paisagem nortenha, que justificam a comoção de Jacinto quando aterrou acidentalmente naquelas paragens, acabado de chegar do chiquismo atordoante de Paris, que se pode tornar entorpecedor e entediante. O segredo de «A Cidade e as Serras» desvenda-se por inteiro naquela estrada ou na canja ainda saborosíssima das tascas perdidas nos contrafortes durienses. É que o Eça conhecia o Norte como a palma das suas mãos. 

Para aguçar ainda mais o apetite sobre os méritos da região e fugir ao caos instalado a Sul, a reflexão do Miguel Esteves Cardoso (de há uns bons anos) é eloquente. Guardiã do berço da nação leva a marca da identidade nacional: 


O NORTE

O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela.

As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram. Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades.

No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas há uma verdade maior.

É que só o Norte existe. O Sul não existe.

As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.

No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? (…)
Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país.

Não haja enganos. (…) Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o Norte é onde Portugal começa.

Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo. (…) sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular. (…)

Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.

No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade.

Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.

O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.

As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. (…)

Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. (…)

Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem.

As mulheres do Norte deveriam mandar neste país.

Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. (…) Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossa verdade.

Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, (…)

Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos (…), defendem o 'Norte' em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo. Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. (…)

Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes (…), com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.

O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm de dizer 'Portugal' e 'Portugueses' (…) sem complexos e sem patrioteirismos. (…) Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?»

por Miguel Esteves Cardoso 


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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