19 agosto 2015

Game viewing

Há sete anos, que se completam no final do mês, estava num Lodge no Zimbabwe para alguns dias (luxuosos, a 12€ / dia) de safari fotográfico. Poderão relembrar os pormenores abaixo.

Hoje ainda estarei com um amigo recente que, volta não volta, vai a Moçambique caçar, tendo inclusivamente assumido um negócio nessa área. Um destes dias disse-lhe que gostava de ir com ele, tudo dependendo da evolução da vida profissional e financeira. Nunca disparei uma arma contra um animal, mas gostaria de ter essa experiência. Como me sentirei depois? Incomodado, como penso, ou todo entregue a um espírito ancestral de caçador? Acima de tudo move-me uma certa curiosidade sociológica: estar uma semana (não quererei estar mais) no meio do mato, isolado de comunicações e comodidades. Como me darei?

JdB

***

Dados que parecem relevantes para um melhor enquadramento da reportagem que segue:

Hóspedes do Nduna Safari Lodge: JdC e este vosso criado; uma diplomata relativamente júnior da embaixada inglesa e a sua irmã, ainda mais júnior; um casal com um filho dos seus 16 anos e com uma altura obscenamente elevada. O pai (presume-se que fosse, dado que o ADN não se observa a olho nu) neozelandês; a mãe, natural deste país, e que sofreu um qualquer trauma que lhe solta um conversar ininterrupto num inglês dificilmente compreensível. Tentou explicar o drama ao JdC, mas interpôs sempre uma outra história, e mais outra. E outra ainda… Resta-nos pois, a especulação – e o descanso do ouvido, não obstante a amabilidade da interlocutora.

Rotinas de Game Viewing: alvorada pelas 05.30h, chá, café e bolinhos trinta minutos depois; debandada para o mato decorrido igual período de tempo. Chegada pelas 09.30h, para pequeno-almoço. De tarde, o mesmo cerimonial das bebidas e biscoitos, mas a começar pela hora terceira com arranque passada meia hora. Chegada pelas 19.30h, a tempo de um banho retemperador e de um jantar ao som da savana.


Os meus leitores, fiéis ou ocasionais, perguntarão se vi animais diferentes, aves raras, insectos únicos. Indagarão se temi pela vida ante a investida feroz do búfalo, o rugido tremendo do leão ou o riso escarninho (imaginado, porque não vi) da hiena. Quererão saber se as aves piam diferente, se imitam o rufar dos tambores ou gritam toufraca em shona. A resposta é: não!

Num dia, após uma aturada busca e uma condução arrojada pelo mato e pela savana, já o sol tinha recolhido, encontrámos dois casais leoninos. Soubemos, por quem conhece o seu rebanho, que estavam em digestão de um búfalo deglutido, sem preocupação estética, mas com furor sanguíneo, havia quatro dias. A mansidão era tal que quis levantar-me e afagar-lhes o estômago cheio, sussurrando-lhes bichaninho ao ouvido. Não rugiram, e levantaram a cabeça vaga com uma indiferença que me desiludiu. Talvez eu ficasse pior, se tivesse um búfalo como pitéu...


Na véspera, fazia o grupo o seu descanso, aproximou-se um rinoceronte. Olhou-nos com um ar indiferente a meia dúzia de metros e seguiu a sua vidinha, naquele corpo de antes da criação do mundo. Acontecera o mesmo com um elefante trombudo que, de tanta proximidade, quase nos aquecia a nuca com um bafo quente. A hiena esteve à distância de dois metros; ao gnu quase lhe vi a cor dos olhos; distingui, claramente, o código de barras da zebra.


Dir-me-ão, então, queridos leitores, que não há grande diferença entre os habitantes do Zoo lisboeta e a fauna que povoa este espaço imenso. Poderia ter ido a Sete Rios e poupava a destruição de uma mala. Erro! O bicho pode ser o mesmo, ter a mesma mansidão aparente, mas o habitat é que marca a diferença. Aqui vemos o reino animal nos seus domínios, passeando-se com ferocidade ou ligeireza consoante a sua espécie. Apercebemo-nos das rotinas próprias, dos momentos de caça, dos esquemas de fuga, das regras de acasalamento, dos hábitos alimentares.

Compreendemos que o impala (ou um dos seus inúmeros primos direitos) confraterniza com o babuíno – não porque lhe aprecie a traquinice, mas porque o macaco é um excelente alerta para a presença de predadores; deparamo-nos, a todo o momento, com a fúria destruidora do elefante, que derruba árvores por onde passa para comer uma ramagem carnuda lá do alto; vemos, quase, a obediência da hiena jovem, que permanece na sua toca até que a mãe regresse da caça; descortinamos o piar de alerta dos pássaros e os animais que caçam apenas de noite, como se fossem homens viciados em bas fonds.



Fazer um game viewing é muito mais do que ver a girafa, o mocho, o ginete ou o hipopótamo. É estar ali, onde tudo se passa, ver o mato e a savana, o espaço e a cor (sempre as mesmas referências), o cheiro e a luz, o sol a pôr-se por trás das acácias, a brisa do fim da tarde a agitar as folhas do mopane, o calor confortável do meio do dia a contrastar com o frio tremendo da noite, a paisagem verdejante ou desoladoramente lunar. Fazer um game viewing é sentir, também, a frustração de não ter visto o leopardo, o único dos big five que não se quis mostrar… O que fizemos foi mais do que encontrar bicharada escondida numa ramagem, a assomar por detrás de uma árvore, a escapulir-se na margem de um rio seco.


Por último, mas não menos importante, fazer um game viewing também é sair do jipe e, na orla de um charco, à vista de uma bola amarela que se põe no fio do horizonte, beber um gin and tonic, e realizar que nem tudo se perdeu neste país que já se chamou Rodésia.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom e muito lindo post.

Acerca de mim

Arquivo do blogue