Há quem chore de tristeza, há quem chore de alegria. Por vezes é a visão de algo superiormente bonito que nos provoca lágrimas corridas; outras vezes é uma ternura, um encantamento muito próprio, sei lá eu, que nos embacia os olhos. Foi este enternecimento, inexplicável à luz de uma lógica impessoal, que fez Gonçalo chorar, com a boca muito aberta para que lhe entrasse o ar que faltava. Porque Filomena, no quarto ao lado, se despia para ele com um vagar perturbador.
É normal o desejo carnal perante uma nudez que se revela gradualmente – e pela primeira vez - numa proximidade inquietante. Mas o homem, professor de filosofia num liceu dos arredores, não o sentiu em exclusivo. O amor que devotava a Filomena, administrativa no mesmo estabelecimento de ensino, era de uma intensidade tão própria, que chorou. Muitos não perceberiam esta sensação de exaltação que esmaga um coração que teima em bater a descompasso.
Filomena sentia-se observada através de espelhos de portas, algo que não a incomodava. Devagar, como se o mundo dependesse disso, desapertou os botões da camisa. A lentidão era devoradora, mas ela acreditava no cerimonial, no tempo próprio, na habituação dos sentidos à transcendência de uma mulher, jovem e bonita, despojada dos artefactos que cobrem o seu corpo nu.
Gonçalo espiava, sufocado, a mulher por quem se apaixonara. E via mais uma peça de roupa que tombava no chão. E Filomena desnudava-se, rodando o corpo num misto de pudor e provocação para atrasar a revelação total. O professor passara a fase da lágrima de ternura, explodindo por dentro num vulcão de desejos ardentes. Fechou os olhos, no desespero da criança que tem de esperar pela guloseima longínqua. Quando os abriu, Filomena tinha um cabelo longo e ruivo que lhe tapava o peito, e sentara-se de lado numa cadeira, revelando umas costas tentadoras.
Passados alguns minutos, a rapariga levantou-se de forma calculada e ergueu os braços para apanhar o cabelo. Olhou para o namorado, que lhe revelara Platão e Espinosa, e numa voz…
Podemos ficar por aqui, D. Odete? Estou cansado.
Vítor Guilherme olhou para as mãos, deformadas por artroses que o impediam, há anos, de exercer autonomamente o seu trabalho de escritor, e recostou-se. Ao seu lado, Odete Ramires, que casara como costureira para enviuvar como dactilógrafa, cobriu a máquina de escrever eléctrica com um oleado acinzentado. Arrumou a cadeira com cuidado e silêncio e despediu-se numa voz que revelava educação e ódio:
Até amanhã, Sr. Guilherme. Estimo as suas melhoras.
Já na rua, enfrentando um fim de tarde tristemente frio, Odete Ramires, reformada de emoções, sentou-se numa pastelaria para um bolo seco e um galão escuro. A artrose do autor debilitado era-lhe indiferente; os dedos carcomidos pela dor, também; invejou-lhe, com raiva, a imaginação e o facto de o escritor ter outra vida dentro da própria vida. Quando pensou no Gonçalo e na Filomena, em corpos desnudos amando-se no remanso de uma meia-luz, levou a mão ao pescoço, escondendo um camafeu e sufocando um desejo.
Conheço-a bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.
JdB
(* publicado neste estabelecimento a 26.10.2009)
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