29 outubro 2015

Dos talentos

Será também como um homem que, ao partir para fora, chamou os servos e confiou-lhes os seus bens. A um deu cinco talentos, a outro dois e a outro um, a cada qual conforme a sua capacidade; e depois partiu. 
Aquele que recebeu cinco talentos negociou com eles e ganhou outros cinco. Da mesma forma, aquele que recebeu dois ganhou outros dois. Mas aquele que apenas recebeu um foi fazer um buraco na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.
Passado muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e pediu-lhes contas. Aquele que tinha recebido cinco talentos aproximou-se e entregou-lhe outros cinco, dizendo: 'Senhor, confiaste-me cinco talentos; aqui estão outros cinco que eu ganhei.' O senhor disse-lhe: 'Muito bem, servo bom e fiel, foste fiel em coisas de pouca monta, muito te confiarei. Entra no gozo do teu senhor.'
Veio, em seguida, o que tinha recebido dois talentos: 'Senhor, disse ele, confiaste-me dois talentos; aqui estão outros dois que eu ganhei.' O senhor disse-lhe: 'Muito bem, servo bom e fiel, foste fiel em coisas de pouca monta, muito te confiarei. Entra no gozo do teu senhor.'
Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: 'Senhor, disse ele, sempre te conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te pertence.' O senhor respondeu-lhe: 'Servo mau e preguiçoso! Sabias que eu ceifo onde não semeei e recolho onde não espalhei. Pois bem, devias ter levado o meu dinheiro aos banqueiros e, no meu regresso, teria levantado o meu dinheiro com juros.' 'Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez talentos. Porque ao que tem será dado e terá em abundância; mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. A esse servo inútil, lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes.'»

(Lc 19,12-27)

***

Há muito que contava receber este trecho de Lucas no Evangelho Quotidiano que me chega todos os dias ao correio electrónico. Contava reencaminhá-lo para quem entendo não poder nem dever desperdiçar os talentos que tem. Tardou, e entretanto fui pensando e trocando impressões sobre o tema.

Recuo alguns anos. 15, talvez. Numa conversa intergeracional em casa falava-se sobre um parente que, tendo dois cursos superiores (música e Direito, parece-me) matava o seu tempo de uma forma algo ociosa. Tocou piano com o Rubinstein (não afianço a história mas parece-me que é assim), formou-se como excelentes notas na Faculdade de Direito e, mesmo assim, ócio com ele! 

A argumentação que usei há 15 anos foi a mesma que usei há 15 dias - e, do lado de lá, duas pessoas de gerações diferentes discordaram de mim. Sinal de que se calhar não estou certo - ou terei encontrado os interlocutores errados... 

Então é assim: pode alguém, a quem Deus ou a genética presenteou com talentos desperdiçá-los quase por completo? Tem alguém o direito, face ao facto de tantos lutarem por uma oportunidade e se empenharem de forma tão sacrificada por serem mais num certo mister, de não usar por esses talentos ao seu serviço ou, melhor ainda, ao serviço dos outros? 

No outro dia, pessoa de quem sou amigo recente dizia-me: não tenho jeito para nada; tudo o que consegui foi com muito esforço. E conseguiu muito, reconheço. Por outro lado, vou-me cruzando com pessoas com talentos natos para isto ou para aquilo (e falo de casos concretos, nada de abstracções) que se deixam enredar pelas dúvidas, pelas inseguranças, pelas preguiças, pelas frustrações, pelos erros de análise quanto ao caminho a seguir. 

Tenho ou não alguma obrigação de usar os meus talentos? Tenho ou não o direito de fazer com eles o que me apetecer, inclusivamente deixá-los quietos? Devo ou não equacionar o facto de tantos se esforçarem tanto para atingir qualquer coisa que eu, face ao meu talento, não atinjo porque simplesmente não quero? 

Em bom rigor, o que devemos fazer com os talentos que nos foram confiados?

JdB 

3 comentários:

Anónimo disse...

O talento seria assim uma espécie de crédito obrigatoriamente reembolsado pelo bafejado e muito provavelmente com juros.
Já não bastava o "dom" da vida que nos obriga a vivê-la sem a termos pedido , como agora ainda se sugere um "dom" do talento a ter de ser exercido. Tenha paciência, digo eu que sou ocioso por natureza, vocação e estado de ânimo.

Anónimo disse...

Em consciência devemos pôr os nossos talentos ao serviço dos outros, concordo em absoluto.
Beijinhos

Anónimo disse...

Grande diferença entre:
o anónimo de 29 de outubro de 2015 às 15:29
o anónimo de 30 de outubro de 2015 às 01:04

O primeiro faz o frete de viver. Pouco menos que um homem. Pode ter tido uma vida sofrida, mas nunca chegou a homem. Nunca quis ser amado, quanto mais amar.

O segundo sabe o que é viver. Excelente mulher. Por sentir que é Mulher, afirmo que muito amou e tem sido muito amada.

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