13 setembro 2018

Dos que se doutoram e dos que são pedreiros

No que aos meus textos diz respeito, o meu querido amigo ATM divide-se salomonicamente entre a crítica mais assanhada e o elogio mais fértil. Entre os dois extremos deste contínuo no qual ele derrama uma certa atenção ao que eu escrevo há um estado intermédio. Chama-se alerta, e foi o que ele fez relativamente ao final do meu texto de anteontem. 

(Há ainda a indiferença, algo indefinível nesse contínuo, que se deve ao desinteresse pela forma ou pelo conteúdo, a uma gripe, a um espanto prolongado pelo tema, ou à inexistência de uma brecha por onde entrar com a lança ou com a palma.) 

Anteontem ainda, repito, alertou-me para a conclusão do meu post sobre os jovens que se doutoram em Wordsworth, Pascoaes ou arte moderna. Diz-me ele que pode dar a impressão (o pode dar não é, no entanto, uma expressão que ele use, pois alguma assertividade não concede hipóteses) que eu defenderia uma espécie de degredo destes jovens universitários para as obras, pondo as mentes inteligentes ao serviço das canalizações, das cantarias em pedra, dos disjuntores. O alerta, concedo-o, tem uma certa razão, embora essa visão não me habitasse a mente. 

Num momento que é variável, todo o jovem encontra dentro de si uma vocação, um interesse, uma queda para uma determinada actividade, o desejo de um determinado curso. Todo o jovem construirá um futuro e, para isso, desenhará uma rota para lá chegar, juntará ferramentas. Há os que querem ser engenheiros, médicos, advogados, professores. Alguns quererão tirar cursos superiores porque isso, entre outros factores, lhes dará a possibilidade de lugares mais cimeiros numa organização qualquer, lhes abre portas para posições interessantes, lhes dá a possibilidade de um salário maior, ou, porque não, lhes assegura um certo estatuto. Entre esta juventude há os que têm uma vocação clara: querem ser padres, freiras de clausura, escritores, artesãos de um mister que gere notoriedade pública ou satisfação interior. Ninguém, ou um número muito reduzido, quererá ser canalizador, pedreiro, electricista, a menos que pretenda copiar uma actividade parental, não tenha alternativas ou possua uma visão arrojada da vida. Há os que querem ser marceneiros ou carpinteiros, mas nesses futuros há a possibilidade de uma certa criatividade artística.

Para que serve um doutoramento? Em termos muito simplistas, para ascender a uma determinada posição ou para enriquecimento pessoal. Se esta divisão grosseira for aplicável aos meus colegas de mestrado / doutoramento, vou imaginar que alguns quererão aprender mais - e têm uma situação financeira que lhes permite isso - ou têm uma visão de futuro. E qual será, então, essa visão de futuro? Serem professores universitários? Parece-me lógico, normal, saudável. Mas será isso?

Olho para os meus colegas e sobre alguns faço uma avaliação muito pessoal, muito ligeira, muito falível. Alguns são detentores de um cultura grande e sólida para a idade, ainda que numa determinada área. Alguns têm um pensamento muito estruturado, que lhes permite ligações entre áreas diferentes do saber, sobre as quais discorrem com facilidade e fluidez e que, nalguns casos, são motivo da minha inveja. Outros, como é óbvio, têm inteligências normais, raciocínios normais, cultura normal, factores que lhes permitirão saber mais - ou muito - sobre um determinado tema. Se o objectivo é saber mais, vão no caminho certo. Se a intenção é construir um futuro, para onde vão?

Em momento algum acharia que os meus colegas deveriam deixar uma academia que lhes abre poucas portas para se dedicarem à cablagem e às manilhas - ainda que pudessem ganhar mais dinheiro. Gosto de ver gente a perseguir um desejo, a instruir-se, a pensar sobre as coisas, a cumprir uma vontade ou, simplesmente, a cumprir-se. Mas para onde irão, em Portugal, com um conhecimento grande sobre poetas ingleses, escritores portugueses, arte moderna ou teatro contemporâneo? A pergunta é totalmente genuína e transparente: que lógica está por trás da decisão de um doutoramento aos 30 anos estas áreas?

As caixas dos supermercados estarão repletas de licenciados, mestrados ou mesmo doutorados. Gente que não encontrou uma profissão consentânea com a sua formação académica, gente que talvez não se tenha imaginado por trás de um balcão de loja quando se abalançou a uma formação superior. Noutro prato de outra balança - e tanto o prato como a balança são diferentes - um pedreiro ou um carpinteiro (ou um doceiro, como me disseram um destes dias) pode ganhar muito dinheiro por mês, e talvez não o faça por deficiente formação em gestão ou planeamento. São os excedentários de uma certo prato de balança que deverão colmatar os défices de outro prato de outra balança? Não seguramente, até porque todos - pelo menos para já - ambicionamos para nós e para os nossos filhos o melhor. E o melhor ainda está, aparentemente, na formação académica superior. O meu colega que se especializará (ou especializará ainda mais) em T S Eliot não deve ir para electricista só porque há falta de gente competente que diferencie a corrente alterna da contínua. Ele deve fazer o que quer para chegar onde quer. Não sei é onde é que ele quer chegar.

Do ponto de vista do utilitarismo, é pena que não haja mais gente a querer ser electricista (ou não haja formação adequada), porque não há muitos. Para além de tudo pode ganhar-se bom dinheiro... Isto sou eu a falar, que também incentivaria os meus a serem doutores em vez de serralheiros mecânicos. Estou disponível para pensamentos arrojados, mas nem tudo no meu quintal...

JdB  

1 comentário:

Anónimo disse...

Equívoco bem sanado, o que se agradece.
Não é mistério, é lotaria, porque as escolhas são, a maior parte das vezes, arbitrárias, fortuitas, aleatórias, destino ou acaso; Fado.
As vidas não se fazem , acham-se.
Jeito para os números, gosto de ler, padrinho mecânico….
Enfim, acasos que se casam para casar o destino.
ATM

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