Fui ontem à já habitual reunião de início de ano do Programa em Teoria da Literatura, onde faço o meu doutoramento. Ainda de manhã mandaram-me uma fotografia ternurenta: uma criança de três anos, que me é próxima e faz a caridade infantil de gostar muito de mim, com mochila às costas, pronta para o primeiro dia de escola da sua vida. A imagem é a de uma criança sorridente, a irradiar felicidade, certa, como disse a uma tia, de ir fazer novojamigos. Neste relato que faço deste meu também regresso às aulas, poderia falar do meu contentamento infantil ao cruzar o átrio da faculdade pejado de gente nova, ao conhecer novas caras de novos colegas, ao imaginar o que tenho pela frente de textos para ler e sobre os quais discorrer. Não o farei por pudor.
(Começo com uma curiosidade estatística. Na fila onde me sentei estavam, contanto comigo, quatro pessoas. A que estava à minha direita era canhota, a que estava à minha esquerda também. Eu também sou canhoto.)
Naquela sala de aula desconfortável estariam 40 pessoas, a maior parte delas a fazer o seu mestrado, outras, em menor número, a fazer o seu doutoramento. Olhei à volta, e percebi que no pódio do campeonato geriátrico alguém me daria a medalha de prata. 95% dos alunos terão menos de 30 anos. Ora, isto levanta-me uma questão: o que faz um adulto de 30 anos com um doutoramento em Proust, em Wordsworth, em Wittgenstein ou em estética de qualquer coisa? Não sei, honestamente não sei. Eu também não farei nada com o meu doutoramento, mas o motivo para o fazer foi puramente lúdico, não lhe associei uma valência utilitária. Um adulto (jovem adulto?) com 30 anos está em princípio de vida familiar / profissional. Pensará em casar, em ter um emprego, meios de subsistência, uma carreira, talvez. De que lhe serve saber muito - ou quase tudo - sobre um poeta inglês, sobre um escritor portugês, sobre um filósofo ou sobre relíquias? Não sei, honestamente não sei.
Há dois ou três anos, talvez, perguntei a um destes jovens, no início do seu doutoramento (em T S Eliot, talvez) o que faria ele com isso. A resposta foi clara, curta e concisa: irei trabalhar para o call center de uma vodafone qualquer. O mundo do trabalho braçal, do trabalho repetitivo, do trabalho intelectualmente menos exigente estará pejado de licenciados, mestrados, doutorados. Gente que tratará o cliente por senhor joão, lhe dirá como reiniciar o router ou o custo do roaming no Japão. Em casa, atamancado por trás de uns sapatos, de uma prancha de surf e, quiçá, de uma frustração, estará The Waste Land, ou os livros que falam de um tempo perdido. Entretanto, não se consegue um canalizador, um pedreiro, um marceneiro ou um bom electricista. O que nos diz isto do mundo em que vivemos?
JdB
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