COMO REDESCOBRIR O PAPEL DAS CATEDRAIS NA NOSSA HISTÓRIA?
A Galeria de D. Luís, no Palácio Nacional da Ajuda (PNA)(1) acolhe, até ao próximo Domingo, uma exposição invulgar, que visa lembrar o contributo muito amplo e impactante das catedrais na definição da identidade regional e nacional.
Segundo o comissário da exposição, intitulada «NA ROTA DAS CATEDRAIS – CONSTRUÇÕES [D]E IDENTIDADES»: «Queremos pôr os visitantes a olhar para o património das catedrais como lugares onde se define muita da identidade local e nacional. (…) Dificilmente voltaremos a ter no mesmo espaço estas peças reunidas, e umas ao pé das outras conseguimos elaborar uma história complexa sobre as catedrais em Portugal.»
Além da sua monumentalidade intrínseca, permanecem como espaços de fé e de expressão conjunta da comunidade. De facto, a componente gregária vai além da afinidade religiosa, embora seja o ponto de partida incontestável, constituindo igualmente um ponto de encontro privilegiado das populações. Quantas vezes, emergiram nas catedrais (em sentido lato) os protagonistas de uma certa fiscalização e até oposição aos poderes instituídos! O preço pago, ao longo dos séculos, por essa crítica corajosa e em contra-corrente atesta o alcance de tais vozes, sempre que ousaram lutar pelos valores atropelados pelos mais poderosos. O P. António Vieira será, talvez, o caso mais famoso – encarcerado durante meses pelas críticas tecidas à Inquisição. Percebe-se por que, inevitavelmente, os regimes ditatoriais acabaram por hostilizar os templos e todo o seu modus operandi, demasiado emancipado do poder, erradicando-os ou condicionando-os fortemente, como aconteceu em quase todos os países da Europa.
As responsabilidades dos Bispos eram extensas e de grande peso na vida comunitária, reforçando a centralidade das catedrais para as populações. Em acréscimo à evangelização e prática apostólica, cabia-lhes participar na gestão do território da diocese, no ensino e, frequentemente, na administração da justiça.
Naturalmente que a componente cultural e artística impera nos grandes templos, que convocaram os melhores artistas e artesãos – entre pintores, escultores, arquitectos, ourives, vidraceiros, tecelões, bordadores, estofadores, copistas e até compositores, organistas e demais músicos – para edificar um lugar de beleza e memória-mor de um Povo. Da «Time Out» aos jornais correntes, passando pelas revistas de especialidade, ninguém ficou indiferente à exposição do PNA.
Arriscando um “top ten” de peças interpelativas, designadamente pela sua antiguidade, segue uma escolha possível, entre as 110 peças reunidas na mostra:
- «Nossa Senhora da Boa Morte» - peça barroca cedida pela Catedral de Coimbra, reveladora da proeminência de Maria na história pátria. É significativo que todas as catedrais portuguesas, exceptuando a de Castelo Branco, estejam dedicadas à Virgem, ressaltando a evocação a Nossa Senhora da Assunção. Nesta barca barroca dourada, a Mãe de Deus e dos Homens repousa serenamente, pacificada com a exigentíssima realidade da morte, que conheceu nas duas versões mais extremas: na violência da crucifixão do Filho e na suavidade da sua elevação ao Céu, em estado de «dormição», i.e., por Assunção.
- «Menino Jesus da Cartolinha» - figura de setecentos pertencente à Concatedral de Miranda do Douro. Esculpida em madeira, possui um vasto enxoval, que exprime a devoção dos mirandeses pelo “seu” Menino, com vestes específicas para as diferentes festividades do ano.
- «A Adoração dos Magos» - retábulo de Vasco Fernandes, sobre madeira de carvalho, do Museu Nacional Grão Vasco. Além do colorido fulgurante, impressiona o facto de este óleo, do séc. XVI, já incluir um índio ameríndio no cortejo de adoração ao Recém-nascido.
- Manuscrito de D. Afonso Henriques - em pergaminho, a confirmar a carta de couto que tinha sido outorgada à Sé de Braga por D.Afonso VII de Leão e por D. Urraca.
- O «Cálice de São Geraldo» e a patena - do séc. X-XI, da zona de Entre-Douro-e-Minho, em prata repuxada, cinzelada e vazada, de autor anónimo. A menção a S.Geraldo evoca o 2.º arcebispo de Braga (1095 e 1108).
- A custódia da Sé de Coimbra - oferta de mecenas, datada do séc.XVI, em prata dourada.
- A cruz processional - do séc.XV, originária da Sé Velha de Coimbra, pertença do Museu Nacional Machado de Castro. Com muito originalidade, Nossa Senhora com o Menino ao colo ocupa lugar cimeiro, num gesto plenamente maternal.
- Braço-relicário de S. Teotónio - peça muito antiga, em prata, que guarda dois ossos do braço do primeiro santo português, canonizado pelo Papa Alexandre III (1159-1181) e fundador do Mosteiro de Viseu. Os seus restos foram trasladados do Mosteiro de Santa Cruz para Viseu, ao ser verificada a incorrupção do corpo, durante o processo de canonização.
- Mobiliário sacro em madeira, profusamente trabalhado, desde púlpitos a cátedras, estantes e um sem fim de peças que são, simultaneamente, funcionais e decorativas.
- Pietá do séc. XXI - esculpida por José Rodrigues, em bronze fundido, foi concebida para a nova Catedral de Bragança. Data de 2012.
Citando um testemunho sobre a exposição (2):
«As Catedrais [são] formadoras de identidades - Os melhores […] deram o seu cunho a peças de mobiliário, alfaias, esculturas, vasos e vitrais, para a representação do mais sublime dos sentimentos humanos e espirituais, de devoção e de contemplação, mas também representando as promessas efetuadas, ou a esperança num mundo melhor […] em que participaram, em diferentes graus, todas as classes sociais. […]
A exposição permite melhor olhar para o papel das Igrejas […] na formação da nossa história e da visão que estas foram moldando, que se reflete no modo de ser ou de estar, e de viver das pessoas […]. Mas também porque refletem os valores mais altos dessas comunidades, de natureza cultural, e de natureza espiritual […] [de] afirmação de saberes e conhecimento, e de tradições.»
Uma visita virtual dá uma ideia da diversidade de peças provindas do continente e das ilhas, inúmeras classificadas como «Tesouros Nacionais», segundo assinala o portal do PNA:
A completar a redescoberta das raízes da nossa história oferecida pela exposição dedicada às catedrais, a programação do PNA remata a semana ao som de boa música, com um concerto agendado para 29 de Setembro, às 18h00, em favor da Refood (http://www.palacioajuda.gov.pt/pt-PT/atividades/ContentDetail.aspx?id=974).
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) http://www.palacioajuda.gov.pt/pt-PT/Default.aspx. Horário: das 10h00-18h00, todos os dias, excepto quartas-feiras em que o palácio fecha. Tel.: 213637095 / 213620264.
(2) Manuel Vilas-Boas Tavares, na revista Brotéria saída a 25 de Agosto de 2018.
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