24 setembro 2018

Textos dos dias que correm *


Cerveja, caridade e oração

«Contemplativos, portanto totalmente empenhados no “fazer”, do trabalho manual ao apoio das atividades caritativas das comunidades mais próximas do mosteiro»: falando dos Trapistas, o irmão Lode Van Hecke, abade da abadia de Nossa Senhora de Orval surpreende os seus interlocutores, desmentindo um dos lugares comuns mais difundidos e menos próximos da verdade que circulam sobre a vida diária dos monges. Símbolo desta participação concreta na vida e na economia das sociedades no meio das quais vivem é a produção da cerveja, tradição quase tão antiga como as origens dos seus mosteiros (pelo menos os do norte da Europa).

A 18 de setembro, na embaixada belga junto da Santa Sé, realizou-se um encontro dedicado à joia da coroa da tradição do país, ligada à história da ordem cisterciense e do monaquismo beneditino.

«O adjetivo “contemplativo” não induzirá talvez a pensar de imediato naquilo que está “fora do mundo”, não produtivo, livre da exigência do trabalho? Recordo-me de um professor de matemática que (talvez não apreciasse muito os estudantes da secção greco-latina da época), reagindo aos estudantes que surpreendia distraídos na aula e incapazes de responder à pergunta que lhes tinha colocado, dizia: “O senhor é um contemplativo? Ou é talvez um poeta?”», assinalou o abade.

Contemplativo não é sinónimo de inativo; basta pensar-se no ímpeto missionário que moveu todos os grandes místicos. Também o abade de Maredsous convidou os presentes a pensar de maneira não superficial no lugar que ocupou (e continua a ocupar) a bebida nas comunidades cistercienses ao longo dos séculos, confirmando que «mais ou menos todas as abadias masculinas na Bélgica têm uma cerveja com o seu nome».

Não só: também o marketing faz compreender muitas coisas da história do país e das consequências concretas do beneditino “ora et labora”. «No imaginário belga – afirmou o abade de Maredsous, D. Bernard Lorent –, tudo o que faz referência a uma abadia, faz referência a um produto de qualidade. A imagem da abadia é positiva. Transporta consigo a tradição, o exemplo positivo de um trabalho bem feito».

Além de responder a uma necessidade primária do ser humano, a de beber, produzir cerveja durante séculos significou oferecer um produto mais seguro do que a água. «É preciso não esquecer – acrescentou o Irmão Lode Van Hecke – que a cerveja no nosso país está ligada a um facto: em certas épocas, em que a água estava muitas vezes contaminada, a cerveja garantia uma alimentação mais saudável. Por isso era produzida em todas as vilas, inclusive em algumas famílias. Nas comunidades monásticas a cervejaria fazia parte dos edifícios internos à clausura, como o forno para o pão ou a ferragem para o trabalho do ferro».

Uma das características da Ordem de Cister é o regresso ao trabalho manual, como S. Bento prevê na sua Regra. Não se trata do trabalho no seu sentido mais amplo (“opus”), mas de “labor”. Hoje é difícil imaginarmos o que podia significar este regresso ao trabalho numa cultural medieval que recusava a ideia de uma atividade manual para os cavaleiros, o clero, as pessoas cultas do tempo. É significativo que Bernardo de Claraval tivesse colocado o trabalho manual no mesmo plano da solidão e da pobreza voluntária enquanto fundamentos da «nobreza da vida monástica». Não se trata apenas de uma questão de ascese, mas de realismo. «Como pode o homem – repete Beranrdo aos seus monges – tomar consciência de si mesmo se foge do “labor” e da “dolor” (sofrimento)?».

Entre os ingredientes indispensáveis da cerveja monástica está também a caridade: «Para possuir a marca “Authentic Trappist Product” – explica o abade de Nossa Senhora de Orval –, os proveitos não devem ser unicamente destinados às necessidades da comunidade monástica (materiais ou culturais, como, por exemplo, o financiamento da publicação “Revue Bénédictine”), mas também a projetos de desenvolvimento e obras caritativas. Por vezes penso: se fechassem as cervejeiras trapistas no nosso país, quantas associações de caráter social teriam dificuldades em continuar a existir».

A experiência na produção é muitas vezes partilhada com confrades de outros países; há 10 anos, dado que os rendimentos agrícolas se tinham tornado insuficientes para manter a comunidade, dois frades do mosteiro da Cascinazza de Milão visitaram as abadias de Westvleteren, Achel e Chimay para aprender os segredos da produção. Em 2008 nasceu a primeira microcervejeira italiana gerida inteiramente por monges, que produziu a primeira cerveja artesanal monástica do país, continuando em Itália a tradição secular das cervejas trapistas belgas “de abadia”.



* Silvia Guidi
In LOsservatore Romano, 22.9.2018
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: The Tablet | D.R.
Publicado em 21.09.2018

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue