As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
30 junho 2022
Da sabedoria popular *
29 junho 2022
Textos dos dias que correm
A Felicidade vem da Monotonia
Os ilógicos doentes riem - de mau grado, no fundo - da felicidade burguesa, da monotonia da vida do burguês que vive em regularidade quotidiana e, da mulher dele que se entretém no arranjo da casa e se distrai nas minúcias de cuidar dos filhos e fala dos vizinhos e dos conhecidos. Isto, porém, é que é a felicidade.
Parece, a princípio, que as cousas novas é que devem dar prazer ao espírito; mas as cousas novas são poucas e cada uma delas é nova só uma vez. Depois, a sensibilidade é limitada, e não vibra indefinidamente. Um excesso de cousas novas acabará por cansar, porque não há sensibilidade para acompanhar os estímulos dela.
Conformar-se com a monotonia é achar tudo novo sempre. A visão burguesa da vida é a visão científica; porque, com efeito, tudo é sempre novo, e antes de este hoje nunca houve este hoje.
É claro que ele não diria nada disto. Às minhas observações, limita-se a sorrir; e é o seu sorriso que me traz, pormenorizadas, as considerações que deixo escritas, por meditação dos pósteros.
Fernando Pessoa, in 'Reflexões Pessoais'
28 junho 2022
Duas Últimas
27 junho 2022
26 junho 2022
XIII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Lc 9,51-62
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Aproximando-se os dias de Jesus ser levado deste mundo,
Ele tomou a decisão de Se dirigir a Jerusalém
e mandou mensageiros à sua frente.
Estes puseram-se a caminho
e entraram numa povoação de samaritanos,
a fim de Lhe prepararem hospedagem.
Mas aquela gente não O quis receber,
porque ia a caminho de Jerusalém.
Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram a Jesus:
«Senhor,
queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?»
Mas Jesus voltou-Se e repreendeu-os.
E seguiram para outra povoação.
Pelo caminho, alguém disse a Jesus:
«Seguir-Te-ei para onde quer que fores».
Jesus respondeu-lhe:
«As raposas têm as suas tocas
e as aves do céu os seus ninhos;
mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça».
Depois disse a outro: «Segue-Me».
Ele respondeu:
«Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai».
Disse-lhe Jesus:
«Deixa que os mortos sepultem os seus mortos;
tu, vai anunciar o reino de Deus».
Disse-Lhe ainda outro:
«Seguir-Te-ei, Senhor;
mas deixa-me ir primeiro despedir-me da minha família».
Jesus respondeu-lhe:
«Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás
não serve para o reino de Deus».
24 junho 2022
Textos dos dias que correm
Contra uma classe média-alta de verbos reflexivos
Numa entrevista ao Expresso há cerca de um ano, o ator Luís Miguel Cintra descrevia como, após o 25 de Abril, os seus colegas e ele próprio compreendiam o teatro que praticavam. “Havia a ideia de que alguns tinham a sorte de ter estudos superiores e formação cultural. Essas pessoas tinham uma responsabilidade pública, que assumia algum didatismo. Na altura, dizia-se ‘formar’. Queríamos formar um público, formar espectadores. Ao ler o que escrevi ao longo dos anos, vejo uma reflexão permanente sobre o próprio ofício, como se estivesse sempre a passar uma espécie de exame de consciência. Não sei se herdei isso da minha formação católica: a ideia de fazer o bem, de generosidade, de viver para os outros.”
Esta passagem tem permanecido comigo. Como sempre que ouço falar quem participou naquele capítulo da nossa história coletiva, acorda em mim o fascínio daquele tempo inaugural, repleto de cisões e decisões, que nos conduziu à democracia participativa. Um tempo de entusiasmo e que nos contagia, só de o ouvir relatado. A segunda reação, automaticamente provocada, foi de algum espanto pelo despudor com que Luís Miguel Cintra fala de uma responsabilidade que – creio podermos assim denominar – é definida por classe de instrução: aqueles que tinham a sorte de ter educação superior, sentiam a responsabilidade de formar os outros, que lhes eram inferiores na instrução.
Parece-me reveladora a utilização das palavras “sorte” e “formar”. Porque nenhuma destas palavras tem hoje grande reputação: a sorte foi destronada pelo mérito, e a formação de quem-pouco-tem foi substituída pelo respeitoso distanciamento face à autonomia individual do sujeito.
Mas não foi isso que me cativou a sensibilidade, nem tão pouco a fugaz ideia de os acusar de paternalismo-classista. Aquilo que me moveu foi o facto do relato de Cintra do pós-’74 descrever aquilo de que sinto falta, de forma instintiva, e que considero absolutamente valioso, em 2022 como há cinquenta anos.
Hoje, e já há algum tempo, segundo consta, a classe média alta comporta-se como se fosse pobre. A diferença é que, enquanto os pobres estão limitados pelas circunstâncias materiais, os ricos limitam-se por ideias imateriais e por opção. Aproveitam a suposta liberdade que lhes é conferida pelo conforto financeiro, não para descobrirem a ocupação e caminho de vida que mais os realiza, mas antes para se submeter a uma doutrina inquestionável e rígida, que lhes é imposta e alimentam.
Nesta doutrina existe como que um decálogo que define coisas como o que são carreiras profissionais dignas; o que são estilos de vida dignos de admiração; o que merece ser descrito por “ah… que desperdício ele ter ido por ali”; quem devemos seguir ou invejar, entre outras coisas. O principal critério é, tanto quanto a minha hermenêutica permite, o dinheiro. Se paga bem, em princípio é digno; se paga mal, é desperdício.
Aquilo que era suposto “libertar” e permitir optar por uma multiplicidade de estilos de vida, ocupações ou profissões, acaba por ser ter o efeito contrário. É um paradoxo revelador. Quem beneficia daquilo que é considerado como o principal pressuposto para a liberdade de escolha – o dinheiro – é quem mais conscientemente renuncia a tomar uma verdadeira escolha em liberdade.
Parece que, quanto mais numeroso o leque de caminhos, motivações e ocupações que podemos seguir, maior a tentação em escolher o caminho da produtividade e capitalização económica e de estatuto. Como se fôssemos máquinas de produção. E uma vez que o mercado é cada vez mais competitivo, cada vez maior se torna a necessidade de nos focarmos em nós próprios. É fundamental concentrarmo-nos, potencializarmo-nos, otimizarmo-nos e outros verbos reflexivos centrados no próprio sujeito.
Com as escolhas de uns, sofremos todos. Não sofremos diretamente, pois ninguém agride ninguém. Mas todos perdemos o bem potencial que daí poderia advir. Regressemos ao exemplo luminoso de Luís Miguel Cintra e dos primórdios da nossa democracia. Se Cintra e os seus companheiros adotassem uma outra postura, mais egoísta, descomprometida e menos formativa ou altruísta, não magoavam nem desrespeitavam ninguém. A sua omissão ficaria escondida no anonimato. Mas todos perderíamos: os que não têm, a quem deixou de ser dado; os que têm mas não deram, deixaram a sua humanidade por cumprir; e todos nós porque, perdendo uma oportunidade de colaborar, enfraquecemos os laços que nos unem e a justiça que nos chama.
Não tenho dados que sustentem esta tese, pois resulta mais do olhar do que da matemática. Tão pouco tenho soluções que a resolvam. Desconfio que comece pela reflexão da “sorte” que temos, pois daí nasce a responsabilidade que temos uns pelos outros. Só assim teremos capacidade para viver e trabalhar acompanhados de “uma reflexão permanente sobre o próprio ofício” a que nos entregamos. Seja ele qual for, onde for, com quem for, será para os outros.
Vasco Ressano Garcia, tirado daqui
23 junho 2022
22 junho 2022
Vai um gin do Peter’s ?
A UCRÂNIA ESTÁ A MUDAR-NOS
21 junho 2022
Do sossego absoluto *
Philip Mechanicus, jornalista, esteve preso no campo holandês de Westerbork. Etty Hillesum [Cartas, 1941-1943, Assírio e Alvim] numa carta escrita entre 5 e 9 de Julho de 1943, cita-o bem, porque ouviu da boca dele: se sobreviver a estes tempos, sairei deles como alguém mais maduro e mais profundo, e se morrer morrerei como alguém mais maduro e mais profundo. Não seria nesse dia que Mechanicus embarcaria no comboio com destino à morte, iminência que lhe suscitou a frase. Morreria em Auschwitz, em 1944.
20 junho 2022
Poemas dos dias que correm
Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas
cerimónias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tacteando no escuro.
Walt Whitman, in "Leaves of Grass"
19 junho 2022
XII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO – Lc 9,18-24
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Um dia, Jesus orava sozinho,
estando com Ele apenas os discípulos.
Então perguntou-lhes:
«Quem dizem as multidões que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns, João Baptista; outros, que és Elias;
e outros, que és um dos antigos
profetas que ressuscitou».
Disse-lhes Jesus:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu:
«És o Messias de Deus».
Ele, porém, proibiu-lhes severamente
de o dizerem fosse a quem fosse
e acrescentou:
«O Filho do homem tem de sofrer muito,
ser rejeitado pelos anciãos,
pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas;
tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia».
Depois, dirigindo-Se a todos, disse:
«Se alguém quiser vir comigo,
renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz todos os dias e siga-Me.
Pois quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la;
mas quem perder a sua vida por minha causa,
salvá-la-á».
17 junho 2022
16 junho 2022
Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
EVANGELHO – Lc 9, 11b-17
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
estava Jesus a falar à multidão sobre o reino de Deus
e a curar aqueles que necessitavam.
O dia começava a declinar.
Então os Doze aproximaram-se e disseram-Lhe:
«Manda embora a multidão
para ir procurar pousada e alimento
às aldeias e casais mais próximos,
pois aqui estamos num local deserto».
Disse-lhes Jesus:
«Dai-lhes vós de comer».
Mas eles responderam:
«Não temos senão cinco pães e dois peixes…
Só se formos nós mesmos
comprar comida para todo este povo».
Eram de facto uns cinco mil homens.
Disse Jesus aos discípulos:
«Mandai-os sentar por grupos de cinquenta».
Assim fizeram e todos se sentaram.
Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes,
ergueu os olhos ao Céu
e pronunciou sobre eles a bênção.
Depois partiu-os e deu-os aos discípulos,
para eles os distribuírem pela multidão.
Todos comeram e ficaram saciados;
e ainda recolheram doze cestos dos pedaços que sobraram.
15 junho 2022
Moleskine
Aeroporto de Lisboa (I)
Tem causado furor e indignação as horas de espera a que os turistas de fora da Europa são submetidos no Aeroporto de Lisboa. As fotografias são explicativas. Sim, é indigno, como me parece indigno ouvir um governante dizer que não há solução. Como também me parece indigno alguém responsável dizer que a situação se deve a um pico de chegadas. Vou imaginar que há uma série de aviões que chegam inesperadamente, sem que ninguém saiba, perante o espanto dos controladores áereos de voo - olha mais um! e olha outro ali... ena pá, tantos!
Aeroporto de Lisboa (II)
No espaço de três ou quatro semanas embarquei numa low cost para Viena de Áustria - Terminal 2, portanto. O espectáculo é de vergonha: uma sala apinhada de gente que não se consegue mexer, uma sanduíche a custar os olhos da cara e, para terminar, uma casa de banho cujo cheiro me fez lembrar a tasca mais tasca de província há 40 anos. O cheiro era - e perdoem-me o grafismo - a mijo. Que imagem damos de Portugal?
TAP
Querer viajar na TAP é como ir a Toronto e querer comer um pastel de nata - é uma decisão sem grande racionalidade por detrás. Vim na TAP de Viena para Lisboa: o voo atrasado, como é costume nestes voos de fim de dia; monitores na sala de embarque a informarem a obrigatoriedade de um procedimento que já não é obrigatório há mais de um mês; por fim, uma assistente de terra que, à pergunta se aquele procedimento era para cumprir, respondeu secamente: não sei. À chegada a Lisboa, o avião a estacionar - como de costume - no ponto mais afastado do edifício; 15 minutos de espera dentro de um autocarro porque um outro autocarro que embarcava passageiros em trânsito para o Funchal não se desviou 5 metros. Respondi a um questionário habitual: fui demolidor.
Frase ouvida por aí
"o turismo vai matar o turismo".
O que somos depois de mortos
O Sr. Verde, como foi conhecido, viveu uns escassos 31 anos, tendo morrido de tuberculose pulmonar. Na sua adultez dedicou-se a algumas actividades comerciais herdadas de um pai, pessoa abastada. Era conhecido, repito, por Sr. Verde. Quando morreu passou a ser conhecido como Cesário Verde. Tiraram-lhe o título de senhor, colaram-lhe o apelido que já tinha e nascia o poeta. Embora a mesma pessoa, o Sr. Verde não era o Cesário Verde. São dele, de Cesário Verde, e não do Sr. Verde, os versos seguintes.
Merina
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.
14 junho 2022
13 junho 2022
Poema para o dia de hoje
SANTO ANTÓNIO
Nasci exactamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!
Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.
(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)
Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.
Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza, Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.
(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.
És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.
És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.
És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.
Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?
Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro. Fernando Pessoa. (Organização de Alfredo Margarido.) Lisboa: A Regra do Jogo, 1986.
12 junho 2022
Solenidade da Santíssima Trindade
EVANGELHO – Jo 16,12-15
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Tenho ainda muitas coisas para vos dizer,
mas não as podeis compreender agora.
Quando vier o Espírito da verdade,
Ele vos guiará para a verdade plena;
porque não falará de Si mesmo,
mas dirá tudo o que tiver ouvido
e vos anunciará o que está para vir.
Ele Me glorificará,
porque receberá do que é meu
e vo-lo anunciará.
Tudo o que o Pai tem é meu.
Por isso vos disse
que Ele receberá do que é meu
e vo-lo anunciará».
10 junho 2022
10 de Junho
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972). - 57.
***
Poema e imagem tirados daqui
09 junho 2022
08 junho 2022
Vai um gin do Peter’s ?
MÚSICA EM CAMPO DE PRISIONEIROS NAZI
Amanhã, dia 9 de junho (com entrada livre), às 18h, no Museu do Oriente, jovens solistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa vão interpretar uma obra especial do compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992) – «Quarteto para o Fim dos Tempos». O título apocalíptico ganha especial densidade por ter sido composta e estreada num campo de prisioneiros nazi na Polónia – o pouco conhecido Stalag 8 A da Silésia. Messiaen concebeu-a como homenagem ao Anjo do Apocalipse, que levanta a mão direita para o Céu bramando: «Eis que não haverá mais tempo», conforme narra a visão do Evangelista S. João (Ap.10, 5-6).
Em Paris, o compositor tem direito a nome de rua. |
Messiaen era melómano, organista, compositor desde os 7 anos e ainda ornitólogo. Aos 18, começara a coleccionar chilreios de pássaros, de que recolheu milhares, nas suas digressões pelo mundo. Transpunha-os, frequentemente, para as suas músicas, conferindo-lhes uma sonoridade original e naturalista.
Vista da casa de férias de Messiaen, sobre o lago Laffrey, onde compôs muitas das suas obras. |
Filho de um professor de literatura inglesa e de mãe-poeta, Olivier cresceu num meio artístico, rodeado do Belo e de uma fé vivida. Condensava a sua vida de artista e de profundo humanismo em poucas palavras: «A minha fé é a tensão mais dramática da minha vida. Sou crente, por isso canto palavras de Deus aos que não têm fé. Ofereço cantos de pássaros aos que vivem nas cidades e nunca os ouviram, faço ritmos para os que apenas conhecem as marchas militares e o jazz, e pinto cores para quem não as vê».
Escultura vanguardista de Messiaen feita pelo amigo escultor de origem polaca, Josef Pyrz, para o átrio exterior da Igreja de Nossa Senhora de Bruyères, em Neuvy-sur-Barangeon. |
Quando rebentou a Segunda Guerra, alistou-se. Mas, logo em 1940, foi capturado pelos alemães e levado para o campo de prisioneiros no Leste, destinado a franceses, belgas e outros militares da Europa ocidental. Ali padeceu, durante 9 meses, fome, frio e trabalhos árduos. Valeu-lhe a amizade com um guarda prisional, que lhe facilitou papel e lápis para compor o seu Quarteto mais famoso. Começou por ter de o adaptar aos instrumentistas disponíveis, companheiros de cativeiro: o violinista Le Bulaire, o violoncelista Etienne Pasquier, o clarinetista Henri Akoka e ele num piano com teclas falhadas. Aliás, como todos os instrumentos estavam semi-delapidados, a pauta teve de se adaptar a um espectro sonoro mais reduzido.
A estreia do Quarteto teve lugar a 15 de janeiro de 1941 e foi um acontecimento para os cerca de 5 mil prisioneiros e guardas prisionais que serviram de público. É comovente o sucesso que Messiaen lembra, apesar de a sonoridade não ser fácil, como assumiu quando explicou o alcance maior da obra: «é certo que não é agradável. Mas estou convencido que a alegria existe, que a existência do invisível se sobrepõe ao mundo visível, que a alegria suplanta o sofrimento, como a beleza suplanta o horror». E gravou no diário as seguintes linhas sobre aquele concerto insólito, que alguém comparou à audiência heterogénea que ouviu do Salvador o magnífico Sermão da Montanha: «It took place in Goetz in Silesia, in a dreadful cold Stalag buried in snow. We were 30,000 prisoners (French for the most part, with a few Poles and Belgians). The four musicians played on broken instruments: Etienne Pasguier's cello had only three strings; the keys of my upright piano remained lowered when depressed... It's on this piano, with my three fellow musicians, dressed in the oddest way — I myself wearing a bottle-green suit of a Czech soldier — completely tattered, and wooden clogs large enough for the blood to circulate despite the snow underfoot...that I played...before an audience of 5,000 people. The most diverse classes of society were mingled: farmers, factory workers, intellectuals, professional servicemen, doctors, priests. Never before have I been listened to with such attention and understanding.»
Em Março de 1941, foi libertado e instalou-se em Paris como professor do conservatório. Pelas suas aulas passaram grandes nomes da música do século XX como Pierre Boulez, Iannis Xenakis e George Benjamin, entre outros.
Para quem não possa ir ao Museu do Oriente, aqui vai uma boa actuação dos oito andamentos(1) do «Quatuor pour la fin du temps», que ressoou pela primeira vez num pátio coberto por uma camada de neve impiedosa, mas onde chilreios de rouxinóis e de melros marcaram presença. Luminoso.
:
A força da obra confirma o que Messiaen declarou dela: «(é) um grande acto de fé». Naquele Inverno de 1941, foi igualmente um sinal de esperança incrível, que abriu uma brecha de vida num dos recantos mais obscuros e sofredores da história da humanidade. Imperdível.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
______________________
(1) Os 8 andamentos são: I. "Liturgie de cristal", II. "Vocalise, pour l'Ange qui annonce la fin du temps", III. "Abîme des oiseaux", IV. "Intermède", V. "Louange à l'Éternité de Jésus", VI. "Danse de la fureur, pour les sept trompettes", VII. "Fouillis d'arcs-en-ciel, pour l'Ange qui annonce la fin du temps"e VIII. "Louange à l'Immortalité de Jésus".
07 junho 2022
06 junho 2022
De uma conferência sobre oncologia pediátrica
Regressei ontem de Viena, ontem assisti a uma conferência da Childhood Cancer International (Europe). Notas breves e potencialmente desinteressantes.
Comecei a viajar de avião de forma regular em 1972. Passados 50 anos entrei numa nova fase: levei farnel para dentro de um avião, já que o serviço a bordo da Ryanair é o que muita gente conhece. Na verdade, da última vez que viajei nesta companhia, na fila 13 já só havia Pringles e bebidas gaseificadas. Morrerei, mas ainda é cedo, pelo que passei fome, o que me pareceu uma opção. ais acertada. Desta vez precavi-me e levei uma sanduíche e um sumo. Como não estou habituado a estas modernices, levei um sumo cujo volume era superior ao permitido por lei, pelo que tive de bebê-lo enquanto conversava com o "inspector" das bagagens. O cavalheiro, simpático, contou-me que já havia detectado uma garrafa de vodka e que, perante a opção de consumir ou deixar a garrafa em terra, a sua proprietária optara por bebê-la: pelo gargalo, de seguida, até só restarem vestígios de álcool no fundo do vasilhame.
***
Pelo menos nalgumas partes do mundo voltou-se ao modelo de reuniões presenciais - foi este o caso. Foi muito bom ver pessoas que nunca vira "ao vivo", abraçar pessoas de quem sou amigo há muitos anos, ou conhecer novas pessoas, nomeadamente um indiano, a viver há 12 anos na Suíça e com um filho com cancro, com quem mantive uma conversa intimista; algo que seria impossível via zoom, ou que seria impossível não fossemos personagens de uma filme parecido.
Ter responsabilidades numa organização global ligada ao cancro pediátrico apresente desafios exigentes: como se fecha o fosso entre regiões com 20% de taxa de sobrevivência e com 80% de taxa de sobrevivência. Como se fecha o fosso entre organizações de pais / doentes / sobreviventes participativas, activas, dinâmicas e com recursos, e outras adormecidas, com dificuldades e sem acção? O meu "discurso" na Europa assentou sempre numa ideia fundamental: temos de fazer mais pelo mundo, se não um dia as gerações a seguir a nós terão uma ideia de África (por exemplo) como o sítio onde foram fazer um safari na lua de mel. Tenho consciência de que não há uma Europa apenas - há seguramente duas, dizem-me que talvez três. Talvez por isso algumas organizações (OMS, médicos e organizações de pais) tenham produzido um documento extenso sobre as desigualdades na Europa. Mas, não obstante, a Europa, enquanto continente, está na linha da frente do que de melhor se faz pela oncologia pediátrica.
Há muito trabalho pela frente. Nem sempre me preocupa o volume do que há por fazer; muitas vezes a minha grande preocupação é o caminho que seguir. Não falo de tratamentos médicos, porque esses fogem de alguma forma das mãos da associações de pais e estão bem entregues aos profissionais de saúde. A minha preocupação é como se fecha o fosso entre organizações ou entre regiões? E faz sentido pensar-se que conseguimos fechar? Qual o caminho a seguir?
***
Uma reunião deste tipo não é apenas uma sanduíche no avião ou uma dúvida sobre estratégia. Há uma parte emocional sobre a qual é mais difícil de falar, porque mais dificilmente partilhável. Ao meu lado está uma mulher ainda jovem que perdeu o filho há quatro anos. Na outra ponta da sala uma belga incansável pela cura do filho, com recidivas atrás de recidivas há oito anos. Aqui e ali estão sobreviventes, pessoas que entregam a sua competência ou tempos vazios a lutar pelas crianças que são diagnosticadas de cancro; ou a lutar por si próprios, ainda. Há pessoas que me abraçam há anos, outras que me abraçam agora. Em todas há um sorriso, por vezes sofrido, mas sempre de esperança - seja para si próprios, seja para os outros.
Há poucos dias um amigo perguntava-me porque não parava com esta minha missão, para poder fazer outras coisas que vão sendo adiadas na minha vida. Não tendo a pretensão de achar que faço muita falta, resta-me a certeza do bem que esta comunidade me faz. Talvez aqui esteja por egoísmo.
JdB
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junho
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