Meu querido amigo,
Começo esta carta por uma interrogação. Quem a compõe na realidade? Sou eu que a redijo para ti, és tu que o fazes para mim, ou escrevo-a para mim próprio? Talvez haja aqui uma dimensão de irrelevância, pois o importante é que o tema – entre tantos outros – seja mencionado, conversado, questionado, interiorizado tanto quanto possível. É provável que seja totalmente insignificante saber-se quem é emissor e receptor. Atente-se na mensagem que tudo o resto é acessório, como uma folha de alface velha que adorna um requinte de gastronomia.
Há alguns meses – lembras-te? – jantámos em casa de amigos comuns que partilham connosco visões semelhantes da vida, princípios e opções basicamente iguais. Havia, à volta daquela mesa, um menor múltiplo comum que nos unia a todos: a família e a ética, os valores morais, a honestidade que não se negoceia, a preocupação pela geração vindoura.
A dada altura falámos, no domínio das hipóteses académicas, sobre o que faríamos se o ar que respiramos nos fugisse das mãos no prazo de seis meses, deixando-nos, no entanto, a saúde e o dinheiro para gozarmos esse período.
Estarás recordado que de início muitos de nós mencionaram o prazer, as viagens, o aforrar de divertimento para futuros nenhuns. Depois, pouco a pouco, como se a nossa condição de crentes falasse mais alto, este gozo tão desmedido quanto possível foi dando lugar a uma preocupação mais espiritual de preparação para a eternidade em que todos, cada um à sua maneira, acreditam. Talvez resumisse a minha posição, face à eventualidade de viver apenas seis meses, numa frase que me disse pessoa que estimo muito, ainda que nesta definição caibam interpretações múltiplas: tentava deixar a casa arrumada.
Gosto da ideia porque ela encerra, em meia dúzia de palavras, uma posição muito abrangente. Na realidade, o que é arrumar a casa? É deixar o futuro dos filhos garantido? Precaver a inexistência de dívidas? Gizar investimentos de médio / longo prazo com o rendimento mais favorável? Beneficiar os que cá ficam com um recuerdo da nossa passagem por esta terra?
Arrumar a casa é, seguramente, tudo isso. Mas, atrevo-me a dizê-lo, é também regularizar a nossa relação com os que nos rodeiam, não deixar uma lista longa de créditos mal parados nas relações sociais e familiares, sentir que partimos ao cair do último dia do último mês e que de volta do nosso corpo inerte se juntam todos os que connosco se cruzaram: os que nos amaram e os que nos odiaram, aqueles para quem fomos um vestígio de indiferença militante ou uma lufada de amizade sempre fresca, aqueles que remetemos para um olvido tingido de desprezo ou que privilegiámos com o calor do nosso abraço.
É a segunda vez que face ao teu repto da luta e da não desistência, da resignação e do combate, te contraponho a palavra paz.
Conheço-te o suficiente para estar certo de que nada de muito substantivo nos separa, nada de relevante se interpõe entre os nossos pensamentos, atirando-nos para uma disputa longa – ainda que amigável.
Talvez a nossa verdadeira luta, aquela a que não nos devemos resignar, de que não devemos abdicar seja, realmente, a da arrumação da nossa casa: ir fechando as gavetas das incompatibilidades, das caras que se voltam para não verem, das ruas que se atravessam num repente de disfarce, no ódio que nos consome as entranhas, nas raivas que sempre nos azedam, nas faltas de paciência que diminuem o próximo, na mágoa que sentimos por quem julgamos ter-nos prejudicado, esquecendo, tantas vezes, que talvez estejamos na génese de tudo.
Já pensaste no desafio que seria se todos nós tivéssemos a possibilidade – nem que fosse uma única vez na vida – de sermos confrontados com os últimos seis meses da nossa existência e não com uma esperança de vida estatística que nos permite ir adiando o arrumar da casa? Numa visão simplista das coisas, talvez este desafio pudesse ser o mais importante de todos, porque aferiria a qualidade da última refeição a que todos têm direito: não os condenados à morte por males infligidos, mas os sentenciados à vida pujante, completa, intensa e verdadeira. Toma lá seis meses. O que vais fazer com eles?
Começo esta carta por uma interrogação. Quem a compõe na realidade? Sou eu que a redijo para ti, és tu que o fazes para mim, ou escrevo-a para mim próprio? Talvez haja aqui uma dimensão de irrelevância, pois o importante é que o tema – entre tantos outros – seja mencionado, conversado, questionado, interiorizado tanto quanto possível. É provável que seja totalmente insignificante saber-se quem é emissor e receptor. Atente-se na mensagem que tudo o resto é acessório, como uma folha de alface velha que adorna um requinte de gastronomia.
Há alguns meses – lembras-te? – jantámos em casa de amigos comuns que partilham connosco visões semelhantes da vida, princípios e opções basicamente iguais. Havia, à volta daquela mesa, um menor múltiplo comum que nos unia a todos: a família e a ética, os valores morais, a honestidade que não se negoceia, a preocupação pela geração vindoura.
A dada altura falámos, no domínio das hipóteses académicas, sobre o que faríamos se o ar que respiramos nos fugisse das mãos no prazo de seis meses, deixando-nos, no entanto, a saúde e o dinheiro para gozarmos esse período.
Estarás recordado que de início muitos de nós mencionaram o prazer, as viagens, o aforrar de divertimento para futuros nenhuns. Depois, pouco a pouco, como se a nossa condição de crentes falasse mais alto, este gozo tão desmedido quanto possível foi dando lugar a uma preocupação mais espiritual de preparação para a eternidade em que todos, cada um à sua maneira, acreditam. Talvez resumisse a minha posição, face à eventualidade de viver apenas seis meses, numa frase que me disse pessoa que estimo muito, ainda que nesta definição caibam interpretações múltiplas: tentava deixar a casa arrumada.
Gosto da ideia porque ela encerra, em meia dúzia de palavras, uma posição muito abrangente. Na realidade, o que é arrumar a casa? É deixar o futuro dos filhos garantido? Precaver a inexistência de dívidas? Gizar investimentos de médio / longo prazo com o rendimento mais favorável? Beneficiar os que cá ficam com um recuerdo da nossa passagem por esta terra?
Arrumar a casa é, seguramente, tudo isso. Mas, atrevo-me a dizê-lo, é também regularizar a nossa relação com os que nos rodeiam, não deixar uma lista longa de créditos mal parados nas relações sociais e familiares, sentir que partimos ao cair do último dia do último mês e que de volta do nosso corpo inerte se juntam todos os que connosco se cruzaram: os que nos amaram e os que nos odiaram, aqueles para quem fomos um vestígio de indiferença militante ou uma lufada de amizade sempre fresca, aqueles que remetemos para um olvido tingido de desprezo ou que privilegiámos com o calor do nosso abraço.
É a segunda vez que face ao teu repto da luta e da não desistência, da resignação e do combate, te contraponho a palavra paz.
Conheço-te o suficiente para estar certo de que nada de muito substantivo nos separa, nada de relevante se interpõe entre os nossos pensamentos, atirando-nos para uma disputa longa – ainda que amigável.
Talvez a nossa verdadeira luta, aquela a que não nos devemos resignar, de que não devemos abdicar seja, realmente, a da arrumação da nossa casa: ir fechando as gavetas das incompatibilidades, das caras que se voltam para não verem, das ruas que se atravessam num repente de disfarce, no ódio que nos consome as entranhas, nas raivas que sempre nos azedam, nas faltas de paciência que diminuem o próximo, na mágoa que sentimos por quem julgamos ter-nos prejudicado, esquecendo, tantas vezes, que talvez estejamos na génese de tudo.
Já pensaste no desafio que seria se todos nós tivéssemos a possibilidade – nem que fosse uma única vez na vida – de sermos confrontados com os últimos seis meses da nossa existência e não com uma esperança de vida estatística que nos permite ir adiando o arrumar da casa? Numa visão simplista das coisas, talvez este desafio pudesse ser o mais importante de todos, porque aferiria a qualidade da última refeição a que todos têm direito: não os condenados à morte por males infligidos, mas os sentenciados à vida pujante, completa, intensa e verdadeira. Toma lá seis meses. O que vais fazer com eles?
Termino, porque já vou longo e demorado. Obrigado, meu querido amigo, por me teres lido. Ou será obrigado por me teres escrito? Olha… obrigado, sei lá eu.
2 comentários:
Obrigada por nos ajudar a "arrumar a casa".
Beijinhos
Ah, João, é tão bom viajar nas suas palavras...
E esta casa, então, verdadeiramente arrumada.
A minha nunca está, não adianta.
Mas esta de que fala, vai estando, vai ficando sem pontas de mágoa, sem remorsos, sem raivas e sem ódios, sem pontas soltas para tropeçar, sem passados para esquecer. Vai-se apaziguando, redimindo, remendando, construindo, iluminando.
Obrigada pelos sorrisos, pelas venturas, pelas cores, pelos sabores, pelas imagens, pelos afectos, (...) pelos caminhos que desbravou comigo a tiracolo.
Obrigada por partilhar esse belo prazer de escrever e ser.
Beijinhos e bom regresso a outra casa.
Enviar um comentário