21 abril 2010

Vai um gin do Peter’s ?

No actual cartaz de cinema, entre os melhores, há as grandes realizações, as grandes interpretações, as grandes narrativas e o retrato das grandes figuras históricas.

O SONHO É POSSÍVEL acumula vários méritos: o Óscar da Melhor Actriz Principal, juntamente com o Globo de Ouro de Melhor Actriz de 2010 (Sandra Bullock); um elenco bem caracterizado onde cada actor encarna com uma naturalidade notável a sua personagem; uma trama poderosa, cheia de humanidade; uma família comum onde os gestos cruciais nascem em pequenos momentos, daqueles verdadeiros, que todos reconhecemos no nosso dia-a-dia; mas, acima de tudo, o facto de se basear na realidade, em que o ponto de partida adverso se converte em bem, num efeito dominó, quase irreal! E isso é o mais inacreditável, tendo inspirado a tradução livre do título português, a sublinhar a improbabilidade do sonho realizado.

Uma história maior e factual, que aguenta alguns estereótipos a que o argumento não se conseguiu esquivar. E percebe-se a gigantesca tentação de Hollywood, quando todos os ingredientes se juntaram: em pano de fundo, o desporto favorito dos americanos e o menino pobre, com imenso potencial, que nasce no país das oportunidades, onde se tenta praticar o lema: the sky is the limit! Nas personagens, de um lado, uma família branca, abastada, republicana, do outro, um adolescente negro, indigente, traumatizado pela marginalidade típica de quem nasce na zona proscrita da cidade (Memphis), significativamente conhecida por Hurt Village, submergida na típica espiral de degradação: droga, violação, ditadura dos gangs, orfandade e desenraizamento absoluto. Ali tudo é disfuncional, violento e viciante! Sobreviver é, por si só, uma aventura… Autêntica roleta russa! Michael Oher é o produto real do lado errado do burgo. O lado que todos (com um mínimo de sucesso ou sorte) evitam conhecer. Excepto se houver uma boa razão…
Precisamente, o filme é sobre uma óptima razão!

As melhores razões têm, naturalmente, o nome de pessoas e os factos aqui narrados reúnem várias, em crescendo. Antes de mais, o abandonado Oher, sem a agressividade expectável, face ao seu passado, e uma característica linda, taxada à americana, em percentil: 98% de instinto de guardião! Um dom invulgaríssimo numa criança que fora maximamente desprotegida. Talvez corresponda ao primeiro recorde de Oher, que os foi somando ao longo da vida.

A seguir – cronologicamente – uma professora que se compadece e lhe aplica um método de avaliação, a título excepcional (sendo penalizada pelos colegas), através de prova oral, permitindo-lhe não ser expulso da escola, aos primeiros e previsíveis desaires, quando a maioria o achava um caso perdido, puro desperdício de recursos. Aparece ainda o miúdo confiante e alegre, ruivíssimo, que não se intimida com a enorme estatura de Oher, antes se mete com ele, encontrando-lhe graça onde a maioria apenas via motivos para se afastar… Finalmente, uma noite invernosa, com tudo para ser horrível e, surpreendentemente, o ar enregelado de Oher, mal abrigado numa T-shirt disforme, derrete o coração bondoso de uma mãe, de um pai, de duas crianças a quem nada faltava, enquanto a maioria virava a cara para não se impressionar!

Depois, as felizes e insólitas coincidências, que sabemos serem possíveis, apesar de muitíssimo improváveis: um treinador que faz um diagnóstico precipitado de prodígio atlético, influenciando a admissão de Michael O. numa escola privada, de luxo, onde é o único negro entre brancos. Aliás, este facto merecerá um comentário bem apanhado, por parte da sua mãe adoptiva, que o quer enquadrar etnicamente para evitar o desconforto de se sentir «uma mosca num copo de leite»! O argumento avançado pelo treinador, no magno encontro do Conselho Directivo, é muito bonito mas soa a manobra persuasiva, habilmente esgrimida: a escola cristã não poder deixar de honrar os seus compromissos com a virtude maior – a caridade! Mal sabia ele a caixa de pandora, verdadeiramente caridosa, que tinha aberto… Mas talvez o facto mais inexplicável, à luz da teoria das probabilidades, ainda seja a enigmática sobrevivência de Oher, nado e criado em condições de máxima exposição ao perigo! Até Leigh Anne, expoente da combatividade e do optimismo, estranhava essa circunstância prodigiosa, que só se atreveu a tentar esclarecer com o próprio, bastantes anos depois, com tudo já estabilizado.

Claro que para o profundo da pergunta, a mergulhar no abismo da vida, a resposta racional, lógica, irrefutável, ficaria por dar. O que o teria protegido, até encontrar abrigo numa mansão a transbordar de calor humano, rodeada de um jardim verdejante, no seio de uma família que o sente seu e o acolhe na véspera do Dia de Acção de Graças, uma das festas mais familiares dos EUA?
E será que há mesmo coincidências?

O título original, de tom hiper prosaico, a evocar as entranhas tecnicistas do jogo – The Blind Side: Evolution of a Game – será o melhor retrato, quer do próprio Oher, quer da família Tuohy, onde tudo tem uma aparência demasiado comum, a ocultar um substrato magnânimo, invulgarmente despojado (no meio da abundância em que vivem), animado por uma pedagogia muito disciplinada e lutadora, uma atenção grande aos outros pagando o tributo das escolhas difíceis (na adolescente, o repúdio das amigas pelo novo irmão, de outra raça). Também no relvado, o lado cego é assumido pelo jogador que protege o avançado, viabilizando assim os golos. Menos vedeta, mas não menos campeão! Sobretudo, não há que temer o lado cego, quando este esconde, justamente, o lado melhor da realidade:

- Afinal, a matriarca mandona, que Sandra Bullock personifica na perfeição, é a verdadeira Mãe Coragem, hiper empreendedora, movida por uma energia inesgotável ao serviço do bem! O pudor, de não querer partilhar as lágrimas com uma criança que carrega tanta dor, é bem a marca d’água da sua bondade arrojada.

- Afinal, o falhado Oher é um diamante por burilar, que a ternura de uma família irá lapidar e revelar aos mais incrédulos, simplesmente por o fazer partilhar da sua felicidade e união!

Iniciação de Michael na fábula preferida dos Tuohy, em que o protagonista da estória tem o seu retrato…

- Afinal, a inscrição no arco de pedra, à entrada da escola – «With men this is possible. With God everything is possible» – ganha vida, quando encontra eco no coração de quem não se esquiva às circunstâncias desagradáveis e problemáticas. E isso desafiará sempre as probabilidades mais remotas!

- Afinal, o primeiro gesto generoso – de acolhimento de Oher – é apenas o começo de uma avalanche de novidades, simbolicamente referida no desabafo cómico dos pais (republicanos), a propósito das convicções democráticas da nova explicadora, contratada para tentar o
milagre da sua admissão à universidade. De facto, quantas vezes, a vida nos arrasta num tsunami de surpresas, incontível e até divertido. E nisso (ou será em quase tudo?) supera, em muito, a ficção!

- Afinal, o sonho acontece, sempre que o círculo de pobreza é quebrado por uma mão, ou melhor, uma mãe e toda uma família salvadora!

The Blind Side é, afinal, aquela mão direita, que dispensa saber o que faz a outra… Não conheço muitos assim, embora esteja tanto ao nosso alcance!

Vale a pena ver e ouvir as personagens reais, em discurso directo:

Os pais adoptivos, numa entrevista televisiva: «Michael was there, he had a need. We had the ability to fill it. We all fell madly in love with him, probably within 48 hours. He was an instant part of this family. We just got a great kid, a wonderful addition to our family. (…) Michael wanted to receive help, and he wanted to change his life and better himself
A mãe: «I just felt like I was unstoppable. I felt like no matter what, I was going to win the battle



Michael Oher: «I'm not going to feel sorry for myself because I didn't have a place to stay a lot of time. It is what it is. We've got to go through some things in life. Take it and run with it. (…) Anything Is Possible»

Aposto que o mundo seria mais festivo se o nosso
blind side melhorasse um bocadinho o percentil em favor dos que se cruzam connosco, enregelados…


Uma cumplicidade que foi crescendo, dia após dia.



Abraço a cada um,

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_______________________
FICHA TÉCNICA:
Título original: The Blind Side, evolution of a game
Tradução: O Sonho é Possível
Realizador: John Lee Hancock
Elenco: Sandra Bullock » Leigh Anne Touhy
Quinton Aaron » Michael Oher
Kathy Bates » Miss Sue
Tim McGraw » Sean Tuohy
Lily Collins » Collins Tuohy
Jae Head
Ray McKinnon
Ashley LeConte Campbell
IronE Singleton
Produção: Broderick Johnson, Andrew A. Kosove, Gil Netter
Argumento: John Lee Hancock, baseado em livro de Michael Lewis
Fotografia: Alar Kivilo
Duração: 128 min. Ano: 2009
País: EUA Distribuidora: Warner Bros.
Estúdio: Alcon Entertainment / Warner Bros. / Zucker/Netter Productions

5 comentários:

Anónimo disse...

Não queres virar crítica de cinema, MZ? Gostei muito do "efeito dominó". Bela imagem. Bjs. pcp

Anónimo disse...

A minha filha de 11 anos comentou a generosidade e coragem daquela família. Gostei de falar com ela sobre a nossa obrigação de quebrarmos os tabus para praticarmos o bem. Foi bom ter ido ao cinema (porque não a classificação de M6?)mas que pena o realizador e os actores não terem conseguido fazer mais do que contarem uma boa história (oscar de melhor actriz?!?!).
Que boa ideia MZ ter alargado a sua intervenção ao cinema! deA

Anónimo disse...

Outra vez eu, MZ. Fui ver este filme porque gostei da tua crítica. Um filme perfeito para pais levarem filhos a entrar na adolescência. Um filme que mostra que a generosidade existe e que os milagres acontecem. Como me dizia a minha sobrinha de 12 anos: mas isto é só na América! Será em termos de oportunidades de vida(estudos, vida profissional, etc). Mas não em termos de milagres. Esses acontecem todos os dias, umas vezes a nós, outras a quem nos rodeia e conhecemos. Achei que o filme não era mais do que uma história bem contada, concordo com o deA, mas que bem contada e que fundo tão bonito. Proposta: fala-nos do De Profundis, MZ. Bjs. pcp

Anónimo disse...

Querida Maria Zarco

A sua interpretação do filme – sempre fantástica, expõe o seu lado tão bondoso e disponível como o da família Tuohy… e que nós, amigos, tão bem conhecemos e podemos provar… agora sou eu a fidedigna testemunha!!!!

Quanto a esta ternurenta história… está tudo dito!

Sem poder precisar uma frase encantadora da Mãe – a realidade da história encarrega-se de mostrar aspectos que para muitos dos mortais ficam diluídos nos seus próprios “blind side”, ou seja, o quanto ganhou a Família Tuohy com a entrada de Oher, e como uma entrega baseada no Amor, mesmo quando nos é exigido maior esforço, luta e partilha, vem dar conteúdo às nossas vidas e enriquecer as relações humanas; claro, o retorno de sentimentos, sem dúvida, é gratificante e estimula a novas aventuras!


Sem querer frisar os pontos chave do enredo tão bem anotados sob o «agudo olhar filtrante Maria Zarco»… o qual já está a fazer história!!!, delirei com a determinação e afectividade de uma Mãe muito “up-to-date” em todos os sentidos; com a atitude do Pai e a…“pinta”…, sempre complacente; achei pilhas de graça à naturalidade e comportamento do miúdo perante Oher, com todas as suas diferenças e semelhanças - e por ser a criança, destituída do peso da sociedade, mas já bem orientada na vida, a primeira a ler o “blind side” de Oher e ainda sublimo a atitude afirmativa da filha adolescente, numa idade muito crítica, demarcando-se corajosamente … tal Mãe, tal filha… de rótulos e convenções, com a perfeita noção dos valores que falam mais alto.

Em Oher tocou-me a sua coragem de lutar por uma vida digna e a humildade de aceitar todo o interesse e amor que lhe eram devidos, retribuindo com a mesma magnitude.

Tudo leva a crer que há coincidências quando estamos predispostos à Vida… e uma inspiração divina (claro!), também!

É, ou, não é esta uma história real?...

CLV

Anónimo disse...

Absolutamente, CLV, quando nos dispomos a abrir-nos aos outros, os milagres tornam-se possíveis e todos ficamos a ganhar. Obrigadíssima pela sua "radiografia" tão certeira, colorida e rica a cada uma das personagens principais do filme e, felizmente também, da própria vida.
Bj gd, mto tocada pelo seu comentário tão amigo e enriquecedor do filme,
MZ

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