Um filme coreano, aclamado em Cannes (em vez de Hollywood) e que em Lisboa só passa nas salas alternativas do King estará irremediavelmente votado a ficar-se por um circuito comercial reduzido? É bem possível, mas ainda assim vale um gin para ser minimamente explorado, até mesmo por quem não se sinta inclinado a vê-lo.
O título é tão sugestivo quanto arrojado — «POESIA»(1). O argumento galardoado em Cannes corresponde-lhe inteiramente, escrito pelo próprio realizador Lee Chang-dong, que assim acumulou várias tarefas difíceis. A partir dos anos 90 e depois de notável sucesso editorial, Chang-dong decidiu assumir o comando da câmara, porque: «enquanto escritor senti, a dada altura, os limites da escrita.» – um elogio rasgado à Sétima Arte. De 2003 a 2004 ocupou o cargo de Ministro da Cultura da Coreia do Sul, apoiando a produção do cinema nacional.
Tapis rouge em Cannes para o “neto”, a “avó” e o realizador
A narrativa de POESIA flui airosamente pelo fio da navalha, com a suavidade silenciosa dos orientais. Não há sequer banda sonora. A protagonista – esplendidamente encarnada pela actriz sénior, Yun Jeong-hie (reformada do cinema há mais de uma década e radicada em França) – equilibra-se na perfeição num mundo batido por forças contrárias, qual bailarina a deslizar no arame.
O professor ensinara-lhe que o primeiro desafio do poeta é aprender a ver.
Sobre o segredo do ponto de equilíbrio conquistado: embora o título faça uma sugestão directa, não há arte que valha à fealdade destrutiva do mal à solta, como ficou claro nas infindáveis autópsias filosóficas ao regime nazi, depois da derrota do Reich. Não há poema capaz de conter lágrimas de dor! Apenas chora com os choram. Menos ainda de reverter a morte em vida, como o provam as vítimas de qualquer Campo de Extermínio, artistas incluídos.
O que ressalta na magna figura da avó, apanhada num furacão de problemas insolúveis, é a lealdade com a vida, i.e., a busca incessante do verdadeiro, sem se esquivar ao sofrimento, com a frescura de uma adolescente. Cada passo seu procurava uma máxima profundidade no viver, uma maior compreensão do significado íntimo de cada momento, de cada gesto — seu e dos outros. Curiosamente, esta perspectiva de consciência mais funda do real aproximava-a dos demais por despertar nela uma empatia solidária, que depois a levava a uma atitude bem diferenciada da maioria (na mera sobrevivência).
As causas próximas para justificar o que nela tomaria o aspecto de um certo alheamento quase excêntrico da realidade, variavam entre a provecta idade e os efeitos do curso de poesia em que acabara de se inscrever. Mas a enorme delicadeza da personalidade da avó (de um neto bastante desgovernado) evidencia bem que tudo nela jogava a favor: desde a sabedoria adquirida ao longo dos anos, ao olhar aguçado pela busca de inspiração poética no dia-a-dia. Uma inspiração que pensava só poder encontrar no Belo puro, cada vez mais estranho à sua circunstância. Como iria, então, conseguir compor umas linhas?
A querida avó, que parecia só acumular desgostos, inclusive pela incapacidade de poetar, revela-se – ela própria – uma extraordinária composição poética, sulcada em carne e osso, numa existência que se tornou um hino de dádiva aos outros. Até ao limite e com um par de gestos que talvez destoem da mentalidade europeia, lembrando as metáforas extremadas (e atípicas) de Lars von Trier. Deste poema, que ela teve a valentia e a simplicidade de encarnar, renasceu vida nova, numa solução cinematográfica de matriz oriental, que cumpre à risca a fórmula do Evangelho, cujo sentido é sobejamente reiterado pela protagonista: se o grão de trigo morrer, dará muito fruto.
São deliciosos alguns encontros e desencontros da avó com os outros. Sempre autêntica. Assim, perante a mãe desnorteada com a perda da filha, o olhar atento de sintonia, de consolo, a fixá-la na memória, como fazemos com aqueles a quem desejamos bem.
Perante o pragmatismo cínico e algo manipulativo dos pais a gerir a crise dos filhos (neto incluído) para fugirem à justiça, o confronto honesto com o seu fracasso enquanto educadora e um empenho incrivelmente frontal para repor o mal cometido, sem qualquer assomo castigador. Nela, justiça e misericórdia interceptam-se, com a limpidez muito una com que brotam da mesma Fonte em conjunto!
Perante o professor de poesia que lhes ensinava um novo olhar para enxergar o mundo, a humildade para insistir nas perguntas elementares e para cumprir os deveres de principiante aplicada, arriscando escrever sem inspiração. Aliás, foi a única a apresentar o TPC do fim de curso.
Apostou na poesia para redescobrir a beleza de um dia-a-dia baço.
Perante a brejeirice das quadras declamadas pelo polícia do Clube de Poetas local, a interpelação suave a pedir beleza nos poemas e, mais tarde, a coragem a recorrer à assistência da autoridade para suprir o que falhara na educação do neto.
Perante o impacto tão feliz das suas palavras junto de uma pobre camponesa, a verticalidade e a generosidade para se abster de explorar a seu favor um diálogo bem lançado e cujo desfecho a poderia isentar de uma pesada dívida.
Na sua história, em especial naquele annus horribilis, a tentativa de descoberta do âmago da vida ecoou em gestos de despojamento ousado, de bondade exigente, de abertura humilde – no fundo, desdobramentos naturais do próprio mistério da Verdade. Ou melhor, da beleza da Verdade, que inspirou à avó o seu primeiro poema, partindo de um dia-a-dia desfalcado de Belo.
No final, respondeu com a vida à célebre pergunta sobre o significado da existência – a inquietação que interpela o ser humano desde o princípio dos tempos e que os grandes homens associam à questão da Verdade, como assume de forma cristalina a espantosa auto-biografia de Gandhi: «The story of my experiments with Truth».
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: SHI
Título traduzido em Portugal: POESIA
Realização: Lee Chang-dong
Argumento: Lee Chang-dong
Produtor: Lee Chang-dong
Produção: Pine House Film
Duração: 137 min.
Ano: 2010
País: Coreia do Sul /França
Elenco
Yun Jeong-hie (avó Mi Ja)
Lee Da-wit (neto)
Ahn Nae-sang (pai de colega do neto)
Kim Hira
Site official (em França) - http:// diaphana.fr/film/poetry
Premiado em Cannes, Toronto e Nova Iorque.
Nas palavras do realizador: «Quando conheci (a actriz), achei que ela tinha o tipo de persona luminosa de que eu necessitava. A personagem é muito interiorizada… sem a actriz certa, não funcionaria.»