Dos vários modelos de
coabitação do Homem não podemos descurar o que se refere ao dele consigo
próprio. Não me atenho na capacidade que cada um de nós tem para viver sozinho,
mas na aptidão que revelamos para nos desdobrarmos num ‘eu’ que se observa e
num ‘eu’ que se deixa observar. No fundo, como se a individualidade fossem dois
– personagem e crítico – de um mesmo solilóquio. Acredito que temos um espaço
confinado por onde deambular interiormente, uma espécie de terreno virtual
limitado onde podemos exercer este mister. Ora, assim sendo, a dimensão dos ‘eus’
– observado e observador – é fundamental. Se o primeiro ‘eu’ – que será sempre
o dominante – se estender nesta virtualidade do espaço, pouco lugar há para o
segundo ‘eu’. É o Princípio de Exclusão de Pauli aplicado à não-matéria. É este
exercício desejável - ou mesmo possível?
[Gregory Tapescu, in Há espaço para dois 'eus'? (Edição do Autor, Bucareste, 2010, traduzido por A. L. Andrade)]
Alberto lia, com vagar e cansaço, este artigo que lhe tinham mandado. Meditava sobre a verdadeira dimensão deste texto, como se adequaria às meditações que vinha fazendo e onde as expressões pequeno e pequenez assumiam foros de protagonismo. Leu e releu, e reforçou as suas convicções.
Sempre tivera a desadaptada e inútil mania de se fixar nas inutilidades da vida, pelo que não estranhou ter olhado mecanicamente para o relógio quando tocaram à campainha. Eram 15.51h, e percebeu que tão cedo não haveria outra capicua horária. Não que isso fizesse diferença para a rotina das marés ou para a constância das luas, mas mesmo assim era uma coincidência. Talvez não significativa, como referia Jung, mas seguramente curiosa. Um minuto de diferença e o relógio revelaria umas desinteressantes 15.50h ou 15.52h sobre as quais não poderia discorrer-se, muito menos filosofar.
Sempre tivera a desadaptada e inútil mania de se fixar nas inutilidades da vida, pelo que não estranhou ter olhado mecanicamente para o relógio quando tocaram à campainha. Eram 15.51h, e percebeu que tão cedo não haveria outra capicua horária. Não que isso fizesse diferença para a rotina das marés ou para a constância das luas, mas mesmo assim era uma coincidência. Talvez não significativa, como referia Jung, mas seguramente curiosa. Um minuto de diferença e o relógio revelaria umas desinteressantes 15.50h ou 15.52h sobre as quais não poderia discorrer-se, muito menos filosofar.
Sou a nova vizinha do rés do
chão. Arranja-me um pé de salsa?
Alberto já a conhecia – mas do capacho. Nesta tendência permanente,
quiçá de uma limitação patológica, de pregar a sua atenção nas menoridades do quotidiano,
deu em tecer considerações íntimas sobre tapetes de esparto e tipos de pessoas.
O que motiva o simples mortal a comprar este ou aquele modelo? Há algum sinal
exterior de onde possa inferir-se uma formação académica, um nível social ou
financeiro, uma opção de vida? De facto, percebera que a vizinha usava um modelo que fazia
publicidade a uma bebida energética, algo que ele nunca experimentara por temor dos
efeitos. O que revelava aquele capacho por comparação com o seu, trivial e esfiampado nas orlas?
A frase
A frase
Sou a nova vizinha do rés do
chão. Arranja-me um pé de salsa?
fora proferida por uma mulher bonita, elegante, com umas calças justas,
botas até ao joelho e decote sensual. Imaginou-a, face a uma camisa caprichosa, a hesitar entre apertar o botão, e revelar pudor, ou não apertar, e mostrar volúpia. A vizinha estava de frente para ele, o que era vagamente perturbador, porque Alberto gostava agora de apreciar as mulheres ligeiramente por trás, para lhes descortinar os contornos - a ondulação elegante de umas costas, o desenho de um pescoço ou de um pedaço da maçã do rosto, um braço em ângulo que esconde o perfil de uns seios discretos. Apesar disso fixou a frase que lhe abriu uma possibilidade com tendências para certeza. Ele, Alberto, tinha sido observado nas suas
entradas e saídas de casa e o pedido da vizinha, mais do que a necessidade de
um raminho de Petroselinum
crispum (outra inutilidade cultural) era uma porta que se
abria, um convite, um desafio, uma hipótese, uma sugestão.
Imaginou-se
a dizer-lhe que sim, a convidá-la a entrar, a levá-la à cozinha, a abrir a porta
do frigorífico e ela a dizer deixe, beije-me, abrace-me e a querer fazer
amor em cima da ilha de fórmica revestida a silestone, a desejar viver a
loucura dos amores proibidos, dos corpos enroscados, das mãos peregrinas e
exploradoras, das bocas ávidas, dos peitos desnudos e ofegantes, dos lábios
frementes, da vizinhança solidária levada ao esplendor do desejo e da oferta, e
ele a dizer sim, sim, era por si que
eu esperava, e a cobri-la de beijos
e de luxúria, de frases tórridas, de mãos que se abrem além da possibilidade
humana, de cinco dedos que são escassos para a
voragem erótica que altera o eixo da terra num meio de tarde outonal.
Se
calhar não tem... Deixe. Olhe, não leve a mal, mas tem um fio de caldo verde na barba...
Alberto
olhou para o relógio. Eram 15.52 e tão cedo não haveria outra capicua.
JdB
JdB
6 comentários:
Adorei!
a diferença que faz um fio verde pendurado que persiste pela força de um eu observador, desvalorizador do potencial "exteriorista" de eu observado.
Muito giro e bem escrito, obrigada!
Beijinhos e continuação de boa escola.
ahniziv disse
Gostei de ler.
You're very special, my dear.
Já estive ao seu lado mas não me atrevi a pedir salsa, quando muito um copo de vinho. ;)
ahniziv disse
E não é que houve uma outra capicua?;)
01:10
Juro que não foi de propósito!
:-)
Antes de 0110 seria 2002
SdB(I)
ahniziv disse
Obvious, my dear Segis(B)! ;-)
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