31 janeiro 2013

Crónicas de um universitário tardio

Ad honorem Sanctae et Individuae Trinitatis, ad exaltationem fidei catholicae et vitae christianae incrementum, auctoritate Domini nostri Iesu Christi, beatorum Apostolorum Petri et Pauli ac Nostra, matura deliberatione praehabita et divina ope saepius implorata, ac de plurimorum Fratrum Nostrorum consilio, Beatum N. Sanctum esse decernimos et definimos, et Sanctorum Catalogo adscribimus, statuentes eum in universa Ecclesia inter Sanctos pia devotione recoli debere.

Foi com esta fórmula, proferida pelo Papa aquando da proclamação de um novo santo, que dei início ao meu ensaio intitulado: A Santidade, ou a perfeição dos dias quotidianos. Está entregue, e será o último que partilho (partes, apenas) com os meus queridos e inesperados fiéis leitores, que as crónicas de um universitário tardio já deram, por agora, o que tinham a dar. A citação de Sophia de Mello Breyner encerra o ensaio.

(...) 
Até há bem pouco tempo vivíamos num mundo de apelo ao consumo, à imagem, ao ter mais do que ao ser, ao sucesso, aos sinais exteriores, ao prazer, ao calcorrear sem fim das ruas dos centros comerciais para comprar mais um artigo. A crise mundial, com reflexos penosos em Portugal, alterou esta realidade – se não por via da vontade de rever modos de vida, talvez pela via da necessidade de alterar modos de vida. Hoje há mais desemprego, mais fome, há famílias abaixo do limiar da decência humana, há horizontes sombrios, amanhãs que já não cantam, um imenso mês que sobra quando o salário – ou a generosidade alheia – chega ao fim. Hoje há ruínas, falências, humilhações, dívidas,  impostos,  abandonos. Hoje há um muro que tapa a palavra esperança, e todas as forças individuais se concentram na defesa do presente porque o futuro, até prova em contrário, existe cada vez menos.

Vivemos um tempo em que não há tempo, um momento dolorosamente duradouro das nossas vidas em que o arsenal que nos resta de energia e resistência interior está voltado para a subsistência, para a sobrevivência, para a dignidade da vida própria, para a manutenção dos limites que cada um define como sendo os mínimos que não o aviltem. Em cada casa de família há desemprego, verba escassa para a faculdade, emigração, crises afectivas que a luta diária potenciou. Em muitos recantos escondidos e envergonhados há choros, olhos cavados por noites insones, mãos inquietas devido à inexistência de soluções.

Neste cenário de desesperança, o que significa ser-se santo? O que significa, na verdade, a perfeição das vidas quotidianas, quando a nossa procura é, cada vez mais, a da satisfação das necessidades mais básicas onde o transcendente tem pouco lugar?

(...)
Enquanto houver alguém que se disponha a lutar pela reposição da justiça, que perdoe ofensas, que rasgue um pouco do seu manto para cobrir a nudez do outro, que se sinta desafiado à entrega gratuita e voluntária aos outros, que não desvie o olhar perante a miséria que confrange ou que chore com a morte injusta, então o milagre e o heroísmo conviverão connosco de mãos dadas. Enquanto houver alguém ao nosso lado que teime em levantar o céu, no significado feliz que lhe dá o Prof. José Mattoso, que encontre no seu sofrimento um sentido para a vida, que saiba oferecer uma palavra a um velho abandonado ou uma mão a uma criança doente ou que arrisque a sua vida pela vida dos outros, então a esperança de um mundo melhor mantém-se viva. Enquanto houver alguém assim, por menor que seja o número desses alguéns na multidão anónima de egoísmos, prepotências, comodismos, indiferenças, não perderemos a esperança, e assumiremos a santidade - ou a perfeição dos dias quotidianos - como uma possibilidade ao virar de uma esquina, numa fábrica, numa vizinhança, num escritório, num hospital, numa escola, numa família.

Negar este caminho é abdicar de uma vida grande, de uma vida maior do que nós, para abraçar um mundo pequeno onde só cabe o eu que nos afasta do próximo, que nos cega de orgulho, que nos ilumina a vaidade com uma luz efémera, que nos faz negar esta ideia salvadora que nenhum dos nossos talentos é verdadeiramente nosso, apenas nos foi disponibilizado para o  serviço de um bem comum. Negar o caminho da perfeição ou, melhor, o caminho da procura da perfeição, é viver num mundo estreito, triste e sombrio, porque só se ilumina de uma vida própria e egocêntrica. Um mundo que será sempre pequeno de mais.  

***
[A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.][1]

JdB


[1] Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Retrato de Mónica (Contos Exemplares) 

3 comentários:

Anónimo disse...

Mais um texto magnifico e muito bem terminado...
Parabéns!
Abr
fq

arit netoj disse...

Muito bom! Obrigada e beijinhos

Anónimo disse...

Mais outra grande nota, JdB! Bjs e até dia 13. pcp

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