14 janeiro 2013

Vai um gin do Peter’s?

Até 27 de Janeiro, a exposição de pintura «AS IDADES DO MAR» estará patente na Gulbenkian(1), subdividindo-se em 6 capítulos: mitologia, registo de imagem, demonstração de poder, actividade económica, espaço de contemplação ou de tempestades e catástrofes.  

Além de o mar ser uma constante na história pátria, também para muitos artistas constituiu uma fonte de inspiração privilegiada. Às telas da Fundação (aliás, com uma boa mostra de produção nacional) juntaram-se muitas outras vindas da Tate, do Prado, do Musée d’Orsay, do Thyssen, do MNAA, e de inúmeras colecções internacionais.

Numa penumbra linda, onde apenas as obras de arte estão iluminadas, a exposição inicia-se numa ante-câmara, ladeada à esquerda por um Turner («Naufrágio de um Cargueiro», 1810) e à direita por um Guardi («Largada do Bucentauro», 1765-1780), focando Veneza – a cidade italiana que parece saída de um sonho. Ali se mescla a terra e o mar, se cruza o Oriente e o Ocidente, se funde o mundo dos homens com o reino de Neptuno, rasgado por gôndolas finíssimas como linhas arqueadas de fundo negro lustroso sob pinturas garridas, que deslizam pelas ruelas fluviais bordejadas por palacetes de pedra, hoje semi-afundados.

Guardi, «A Largada do Bucentauro», 1765-80, F.C.Gulbenkian

Para facilitar, segue-se o percurso sinalizado pela Gulbenkian, começando pelas citações de abertura e fecho da exposição, respectivamente:
- de um cosmógrafo quinhentista, Martín Cortés de Albacar (1510-1582): «Navegar não outra coisa senão caminhar sobre as águas de um lugar para outro (…) este caminho difere dos da terra em três coisas. O da terra é firme, este fluído; o da terra estável, este móvel; o da terra assinalado (i.e., mapeado), o do mar desconhecido
- de Sophia, numa homenagem magistral ao azul dos mares que dominam a geografia interior dos portugueses: «Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto ao mar

Sequência temática:
- na IDADE DOS MITOS, os deuses helénicos e os heróis mitológicos da Antiguidade Clássica protagonizam as lendas narradas através da pintura. Interessante também a tela com um pote esplendoroso em loiça de Cantão, bem em destaque para aludir ao objecto auxiliar do milagre realizado na Ásia pelo conhecido taumaturgo do Oriente, cujo título é «São Francisco Xavier aplacando a Sede dos Companheiros de Viagem» (c.1619), assinado por André Reinoso e pertencente ao acervo do Museu de S.Roque.

- A IDADE DO PODER exibe as grandes esquadras marítimas do início dos tempos modernos ou as paradas náuticas ou os principais feitos militares. A Batalha de Lepanto (a 7 de Outubro de 1571) sobressai numa tela semelhante a uma tapeçaria, com um rendilhado cromático formado pela imensidão de figuras, galeões, velame, bandeiras e estandartes imperiais, que resultam num conjunto extremamente decorativo, onde apenas o alinhamento rigoroso das embarcações e os flocos de nuvens escuras, originadas pela explosão de pólvora, contêm uma nota vagamente bélica.

Anónimo (Monogramista «H»), «A BATALHA DE LEPANTO», c.1573,
Greenwich-National Maritime Museum.

- A IDADE DO TRABALHO assinala a faina marítima, sobretudo piscatória e portuária. Aqui se reúnem vários mestres franceses oitocentistas: Monet, Paul Signac, Boudin.
A pobreza dos estivadores do século passado está bem patente na arte do século XIX e início do XX, de carácter mais intervencionista. A tela de Sadée (1901), em tons pardos e de céu enevoado, transmite uma visão da realidade marcada pela penúria e falta de esperança.
Num óleo bem diferente, iluminado pela claridade do sol mediterrânico, somos arrastados para dentro do pequeno embarcadoiro do quadro de Claude Gellée, em formato alongado, maravilhoso:

Claude Gellée (ou Claude Lorrain) «Paisagem com Embarque de
Santa Paula Romana em Óstia», 1639-40, Museo Nacional del Prado, Madrid.

Já a obra de William Bradford (1823-1892) envolve-nos na luminosidade pálida da região polar, onde parece reinar o silêncio e a serenidade: «Pescadores junto à Costa do Labrador».
 
- A IDADE DAS TORMENTAS evoca os naufrágios e a luta inglória dos marinheiros contra as águas revoltas, apanhados na fúria indomável dos temporais marítimos. Esbarra-se em cenários de tragédia, simultaneamente fascinantes e arrebatadores pela sua beleza única, onde a morte é sempre épica e a imensidão do azul suscita «assombro e pavor», segundo a legenda da exposição.
Ali temos a presença incontornável de Turner (1775-1851) com quadros pertencentes à Fundação, a ombrear com um Amadeo de Souza-Cardoso (1914-15) ou «A Onda» (1869) de Courbet.
No estilo pontilhado da escola de Signac, deparamo-nos com «Homem ao Leme» (1892), assinado por Théo van Rysselberghe e oriundo do Musée d’Orsay, precisamente por doação de Ginette Signac ao Estado francês. G.Fattori está representado por «Libecciata» (1880-85), num vendaval coreográfico de uma árvore de copa bojuda, mesmo à beira-mar.
A lembrar uma versão enfabulada e benigna do navio fantasma de Wagner há a «Vista do Cabo Stephens no Estreito de Cook com Tromba de Água» (1776), de William Hodges.
Recorrendo à palete de tintas para produzir sombreados e desenhar diferentes volumetrias em superfícies escuras, Signac e Hopper (exposto na Idade Efémera) lançam-se num jogo cromático notável:


Paul Signac, «O Pontão de Portrieux», 1888, Kröller-Müller Museum.


Edward Hopper, «Square Rock, Ogunquit», 1914, Whitney Museum of American Art, Nova Iorque.

- A IDADE EFÉMERA corresponde a um álbum de imagens com as aventuras e itinerários da aristocracia e alta burguesia do século XIX, visando registar as novidades, do pitoresco ao excêntrico, do exotismo às paisagens inexploradas do planeta, onde o mar ocupou lugar de destaque. Era a época em que as elites do Norte da Europa se entretinham no Grand Tour do Continente, desde o extremo ocidental até ao Levante.
Com os avanços tecnológicos, na viragem do século XX, assistiu-se a um novo surto turístico, mais massificado, onde a praia e as rivieras se converteram na coqueluche de uma geração com maior mobilidade.
Cenário dilecto do romantismo, os artistas plasmavam nos oceanos os movimentos da alma, afigurando-se-lhes uma extensão natural das emoções e das tribulações psicológicas. Expressão, por excelência, do infinito e das demandas mais profundas da humanidade, era o espaço primordial da descoberta interior, ou o ponto de partida para uma viagem, na ânsia de conhecer novas latitudes.
O estilo de linhas indefinidas de Noronha da Costa, cheias de carga simbólica, está patente numa obra dos anos 80:


Luís Noronha da Costa, «Do Subnaturalismo ao Sobrenaturalismo (Pintura Fria)»,
1988, F.C.Gulbenkian/C.A.M.


Nos antípodas, encontramos as perspectivas quase fotográficas dos nórdicos e dos francófonos, hiper simétricas e fotogénicas, semelhantes às folhas dos calendários antigos (Carfl Nielsen, Claude-Joseph Vernet, J.W.Schirmer).
Outro fenómeno paisagístico fabuloso aparece na tela do russo Alexandre Borisoff – «Os Glariares, no Mar de Kara» (1906).
Inúmeros outros artistas portugueses e estrangeiros enriquecem esta secção com: Hopper, Monet, Malhoa («Praia das Maçãs» -1918), António Carneiro, João Vaz,  Henrique Pousão, Arpad-Szenes, Paul Clee, Boudin ou o espanhol Sorolla, nos seus areais solarengos e paradisíacos por onde se passeiam senhoras de vestes brancas, grandes chapéus de abas e véus esvoaçantes.

- A IDADE INFINITA alude ao misticismo contemplativo a que os oceanos convidam, pois ali se vislumbram os expoentes que transcendem os limites da condição humana, abrindo-nos ao infinito, ao belo, à liberdade ou simplesmente à evasão, à grandeza de horizontes ou até à vertigem e alucinação, à serenidade ou mesmo à morte.
«Luar no Mar» (1888-91), de Henri Moore, está repleto de poesia, favorecido pela forma esguia da tela, painel do biombo polifacetado «Alma Tadema». Igual para a «Sinfonia» (1896) de Giorgio Belloni, focando o desenho sinuoso da ondulação a esvanecer-se no areal dourado. A própria musicalidade do título é auto-sugestiva. Igual ainda para a mistura de verdes e azuis aquáticos, com flocos brancos a pairar no céu, em «Nuvens de Verão» (1913), de Emil Nolde.
De Manet encontramos «A Evasão de Rochefort» (1881), retratando a fuga do cárcere do principal opositor de Napoleão III.

A muitos pintores e a muitas pessoas poderia aplicar-se a observação do biógrafo de Monet – Gustave Geffroy – caracterizando o célebre impressionista francês: «(o mar) era a tela de fundo da sua existência, com as suas vagas e as suas nuvens».


Maria Helena Vieira da Silva, «História Trágico-Marítima» ou «Naufrágio», 1944, F.C.Gulbenkian/C.A.M. Integrado na  Idade das Tormentas, ilustra a conhecida colecção de relatos de desastres marítimos nacionais, datada de 1735-36. Um colorido lindo modela uma vaga gigantesca de náufragos, qual tsunami de desespero aludindo, quer à ditadura do Estado Novo que a pintora repudiava, quer à II Guerra Mundial que mantinha um ritmo de destruição maciça exorbitante.

Revisitar a Gulbenkian e gozar as exposições espantosas que a Fundação nos oferece é das boas maneiras de entrar no Novo Ano em beleza, na mais pura acepção.


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)   Até 27/01/2013, http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.html. Horário: das 10h00 às 20h00, Terça a Domingo, no Edifício da Sede.
Apresentação no site: «O mar é o tema central da exposição que o Museu Calouste Gulbenkian vai apresentar a partir do dia 26 de Outubro, na Galeria de Exposições Temporárias da Fundação. Em exposição vão estar mais de uma centena de obras, dos séculos XVI ao XX, provenientes de 51 instituições nacionais e estrangeiras, com o apoio excepcional do Museu d’Orsay. Partindo de uma sondagem histórica da representação visual do mar, a mostra procura identificar os temas fundadores que levaram à sua extensa e recorrente representação na pintura ocidental. A exposição desenvolverá o conceito que dá título ao projeto em seis secções distintas: A Idade dos Mitos; A Idade do Poder; A Idade do Trabalho; A Idade das Tormentas; A Idade Efémera; A Idade Infinita.
Van Goyen, Lorrain, Turner, Constable, Friedrich, Courbet, Boudin, Manet, Monet, Signac, Fattori, Sorolla, Klee, De Chirico, Hopper, são alguns dos 89 autores presentes na exposição com obras de superior qualidade. Também a pintura portuguesa, através de Henrique Pousão, Amadeo de Souza-Cardoso, João Vaz, Maria Helena Vieira da Silva e Menez, entre outros, contribuirá para esta abordagem exaustiva e por vezes inesperada de um motivo tão fascinante – e simultaneamente com especial significado na história e cultura portuguesas

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