Até 27 de Janeiro, a exposição de pintura «AS IDADES DO MAR»
estará patente na Gulbenkian(1), subdividindo-se em 6 capítulos: mitologia,
registo de imagem, demonstração de poder, actividade económica, espaço de
contemplação ou de tempestades e catástrofes.
Além de o mar ser uma constante
na história pátria, também para muitos artistas constituiu uma fonte de
inspiração privilegiada. Às telas da Fundação (aliás, com uma boa mostra de
produção nacional) juntaram-se muitas outras vindas da Tate, do Prado, do Musée
d’Orsay, do Thyssen, do MNAA, e de inúmeras colecções internacionais.
Numa penumbra linda,
onde apenas as obras de arte estão iluminadas, a exposição inicia-se numa ante-câmara,
ladeada à esquerda por um Turner («Naufrágio
de um Cargueiro», 1810) e à direita por um Guardi
(«Largada do Bucentauro», 1765-1780), focando Veneza – a cidade italiana que
parece saída de um sonho. Ali se mescla a terra e o mar, se cruza o Oriente e o
Ocidente, se funde o mundo dos homens com o reino de Neptuno, rasgado por
gôndolas finíssimas como linhas arqueadas de fundo negro lustroso sob pinturas garridas,
que deslizam pelas ruelas fluviais bordejadas por palacetes de pedra, hoje semi-afundados.
Para facilitar,
segue-se o percurso sinalizado pela Gulbenkian, começando pelas citações de
abertura e fecho da exposição, respectivamente:
- de um cosmógrafo
quinhentista, Martín Cortés de Albacar (1510-1582): «Navegar não outra coisa senão caminhar sobre as águas de um lugar para outro
(…) este caminho difere dos da terra em três coisas. O da terra é firme, este
fluído; o da terra estável, este móvel; o da terra assinalado (i.e.,
mapeado), o do mar desconhecido.»
- de Sophia, numa homenagem
magistral ao azul dos mares que dominam a geografia interior dos portugueses: «Quando eu morrer voltarei para buscar / Os
instantes que não vivi junto ao mar.»
Sequência temática:
- na IDADE DOS MITOS,
os deuses helénicos e os heróis mitológicos da Antiguidade Clássica protagonizam
as lendas narradas através da pintura. Interessante também a tela com um pote esplendoroso
em loiça de Cantão, bem em destaque para aludir ao objecto auxiliar do milagre
realizado na Ásia pelo conhecido taumaturgo do Oriente, cujo título é «São
Francisco Xavier aplacando a Sede dos Companheiros de Viagem» (c.1619),
assinado por André Reinoso e pertencente ao acervo do Museu de S.Roque.
- A IDADE DO PODER exibe
as grandes esquadras marítimas do início dos tempos modernos ou as paradas
náuticas ou os principais feitos militares. A Batalha de Lepanto (a 7 de
Outubro de 1571) sobressai numa tela semelhante a uma tapeçaria, com um
rendilhado cromático formado pela imensidão de figuras, galeões, velame, bandeiras
e estandartes imperiais, que resultam num conjunto extremamente decorativo,
onde apenas o alinhamento rigoroso das embarcações e os flocos de nuvens
escuras, originadas pela explosão de pólvora, contêm uma nota vagamente bélica.
- A IDADE DO TRABALHO assinala
a faina marítima, sobretudo piscatória e portuária. Aqui se reúnem vários
mestres franceses oitocentistas: Monet, Paul Signac, Boudin.
A pobreza dos
estivadores do século passado está bem patente na arte do século XIX e início
do XX, de carácter mais intervencionista. A tela de Sadée (1901), em tons pardos
e de céu enevoado, transmite uma visão da realidade marcada pela penúria e
falta de esperança.
Num óleo bem diferente,
iluminado pela claridade do sol mediterrânico, somos arrastados para dentro do
pequeno embarcadoiro do quadro de Claude Gellée, em formato alongado, maravilhoso:
Claude
Gellée (ou Claude Lorrain) «Paisagem com Embarque de
Santa
Paula Romana em Óstia», 1639-40, Museo Nacional del Prado, Madrid.
Já a obra de William
Bradford (1823-1892) envolve-nos na luminosidade pálida da região polar, onde parece
reinar o silêncio e a serenidade: «Pescadores junto à Costa do Labrador».
- A IDADE DAS TORMENTAS
evoca os naufrágios e a luta inglória dos marinheiros contra as águas revoltas,
apanhados na fúria indomável dos temporais marítimos. Esbarra-se em cenários de
tragédia, simultaneamente fascinantes e arrebatadores pela sua beleza única,
onde a morte é sempre épica e a imensidão do azul suscita «assombro e pavor», segundo a legenda da exposição.
Ali temos a presença
incontornável de Turner (1775-1851) com quadros pertencentes à Fundação, a ombrear
com um Amadeo de Souza-Cardoso (1914-15)
ou «A Onda» (1869) de Courbet.
No estilo pontilhado da
escola de Signac, deparamo-nos com «Homem ao Leme» (1892), assinado por Théo
van Rysselberghe e oriundo do Musée d’Orsay, precisamente por doação de Ginette
Signac ao Estado francês. G.Fattori está representado por «Libecciata» (1880-85),
num vendaval coreográfico de uma
árvore de copa bojuda, mesmo à beira-mar.
A lembrar uma versão
enfabulada e benigna do navio fantasma de Wagner há a «Vista do Cabo Stephens
no Estreito de Cook com Tromba de Água» (1776), de William Hodges.
Recorrendo à palete de
tintas para produzir sombreados e desenhar diferentes volumetrias em superfícies
escuras, Signac e Hopper (exposto na Idade Efémera) lançam-se num jogo
cromático notável:
Paul Signac, «O
Pontão de Portrieux»,
1888, Kröller-Müller Museum.
Edward Hopper, «Square
Rock, Ogunquit»,
1914, Whitney Museum of American Art, Nova Iorque.
- A IDADE EFÉMERA
corresponde a um álbum de imagens com as aventuras e itinerários da
aristocracia e alta burguesia do século XIX, visando registar as novidades, do
pitoresco ao excêntrico, do exotismo às paisagens inexploradas do planeta, onde
o mar ocupou lugar de destaque. Era a época em que as elites do Norte da Europa
se entretinham no Grand Tour do
Continente, desde o extremo ocidental até ao Levante.
Com os avanços
tecnológicos, na viragem do século XX, assistiu-se a um novo surto turístico,
mais massificado, onde a praia e as rivieras
se converteram na coqueluche de uma geração com maior mobilidade.
Cenário dilecto do
romantismo, os artistas plasmavam nos oceanos os movimentos da alma, afigurando-se-lhes
uma extensão natural das emoções e das tribulações psicológicas. Expressão, por
excelência, do infinito e das demandas mais profundas da humanidade, era o
espaço primordial da descoberta interior, ou o ponto de partida para uma viagem,
na ânsia de conhecer novas latitudes.
O estilo de linhas
indefinidas de Noronha da Costa, cheias de carga simbólica, está patente numa
obra dos anos 80:
Luís Noronha
da Costa, «Do Subnaturalismo ao
Sobrenaturalismo (Pintura Fria)»,
1988,
F.C.Gulbenkian/C.A.M.
Nos antípodas,
encontramos as perspectivas quase fotográficas dos nórdicos e dos francófonos,
hiper simétricas e fotogénicas, semelhantes às folhas dos calendários antigos (Carfl
Nielsen, Claude-Joseph Vernet, J.W.Schirmer).
Outro fenómeno
paisagístico fabuloso aparece na tela do russo Alexandre Borisoff – «Os Glariares,
no Mar de Kara» (1906).
Inúmeros outros
artistas portugueses e estrangeiros enriquecem esta secção com: Hopper, Monet,
Malhoa («Praia das Maçãs» -1918), António Carneiro, João Vaz, Henrique Pousão, Arpad-Szenes, Paul Clee,
Boudin ou o espanhol Sorolla, nos seus areais solarengos e paradisíacos por
onde se passeiam senhoras de vestes brancas, grandes chapéus de abas e véus
esvoaçantes.
- A IDADE INFINITA alude
ao misticismo contemplativo a que os oceanos convidam, pois ali se vislumbram os
expoentes que transcendem os limites da condição humana, abrindo-nos ao
infinito, ao belo, à liberdade ou simplesmente à evasão, à grandeza de horizontes
ou até à vertigem e alucinação, à serenidade ou mesmo à morte.
«Luar no Mar»
(1888-91), de Henri Moore, está repleto de poesia, favorecido pela forma esguia
da tela, painel do biombo polifacetado «Alma Tadema». Igual para a «Sinfonia»
(1896) de Giorgio Belloni, focando o desenho sinuoso da ondulação a
esvanecer-se no areal dourado. A própria musicalidade do título é
auto-sugestiva. Igual ainda para a mistura de verdes e azuis aquáticos, com
flocos brancos a pairar no céu, em «Nuvens de Verão» (1913), de Emil Nolde.
De Manet encontramos «A
Evasão de Rochefort» (1881), retratando a fuga do cárcere do principal opositor
de Napoleão III.
A muitos pintores e a
muitas pessoas poderia aplicar-se a observação do biógrafo de Monet – Gustave
Geffroy – caracterizando o célebre impressionista francês: «(o mar) era a tela de fundo da sua existência, com
as suas vagas e as suas nuvens».
Maria Helena Vieira da Silva, «História Trágico-Marítima» ou
«Naufrágio», 1944, F.C.Gulbenkian/C.A.M.
Integrado na Idade das Tormentas,
ilustra a conhecida colecção de relatos de desastres marítimos nacionais, datada
de 1735-36. Um colorido lindo modela uma vaga gigantesca de náufragos, qual
tsunami de desespero aludindo, quer à ditadura do Estado Novo que a pintora
repudiava, quer à II Guerra Mundial que mantinha um ritmo de destruição maciça
exorbitante.
Revisitar a Gulbenkian e gozar
as exposições espantosas que a Fundação nos oferece é das boas maneiras de entrar
no Novo Ano em beleza, na mais pura acepção.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1) Até 27/01/2013, http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.html.
Horário: das 10h00 às 20h00, Terça a Domingo, no Edifício da Sede.
Apresentação no site: «O mar é o tema central da exposição que o
Museu Calouste Gulbenkian vai apresentar a partir do dia 26 de Outubro, na
Galeria de Exposições Temporárias da Fundação. Em exposição vão estar mais de
uma centena de obras, dos séculos XVI ao XX, provenientes de 51 instituições
nacionais e estrangeiras, com o apoio excepcional do Museu d’Orsay. Partindo de
uma sondagem histórica da representação visual do mar, a mostra procura
identificar os temas fundadores que levaram à sua extensa e recorrente
representação na pintura ocidental. A exposição desenvolverá o conceito que dá
título ao projeto em seis secções distintas: A Idade dos Mitos; A Idade do
Poder; A Idade do Trabalho; A Idade das Tormentas; A Idade Efémera; A Idade
Infinita.
Van Goyen, Lorrain, Turner, Constable, Friedrich, Courbet, Boudin, Manet, Monet, Signac, Fattori, Sorolla, Klee, De Chirico, Hopper, são alguns dos 89 autores presentes na exposição com obras de superior qualidade. Também a pintura portuguesa, através de Henrique Pousão, Amadeo de Souza-Cardoso, João Vaz, Maria Helena Vieira da Silva e Menez, entre outros, contribuirá para esta abordagem exaustiva e por vezes inesperada de um motivo tão fascinante – e simultaneamente com especial significado na história e cultura portuguesas.»
Van Goyen, Lorrain, Turner, Constable, Friedrich, Courbet, Boudin, Manet, Monet, Signac, Fattori, Sorolla, Klee, De Chirico, Hopper, são alguns dos 89 autores presentes na exposição com obras de superior qualidade. Também a pintura portuguesa, através de Henrique Pousão, Amadeo de Souza-Cardoso, João Vaz, Maria Helena Vieira da Silva e Menez, entre outros, contribuirá para esta abordagem exaustiva e por vezes inesperada de um motivo tão fascinante – e simultaneamente com especial significado na história e cultura portuguesas.»
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