Deixara de fumar há um ror de anos. Restavam-lhe agora os charutos, que apreciava sem
regularidade nem sabedoria, para lhe matarem um gosto que iria consigo para a
cova. Não bebia em excesso. O último desvario datava do início de uma idade mais adulta, quando
fora protagonista de uma ressaca difícil e de uma vergonha que lhe ficara na
memória. Não jogava descontroladamente,
subjugado pela ilusão de vencer a casa ou de derrotar o cálculo de
probabilidades. Jogava como era - seguro. Embora mais do que lhe permitiria a saúde
e a estética, não comia obscenamente ou às escondidas, não mantinha locais
reservados e secretos onde guardava iguarias pecaminosas. Tinha do sexo uma visão
sossegada, não conseguindo desligar o corpo do coração, exigindo na cama prazer
e sentimento em simultâneo. Nunca se drogara, nunca o ousara fazer. Quisera fumar
ópio, confessava, mas porque tinha lido o Tintim e a ideia se instalara na mente fantasiosa ao
passar os olhos pelo Lótus Azul.
Em
bom rigor, não tinha tendência aparente para a adição nas suas formas mais
corriqueiras: cigarros, comida, droga, jogo, mulheres, álcool. Era aparentemente um homem sem vícios. E no
entanto, cedo percebera que talvez
tivesse a dependência mais perigosa de todas, porque em certa medida lhe matava a simplicidade, a satisfação corriqueira, o inesperado que faz sorrir. No fundo, o seu vício era esse: não ter vícios. O seu vício consistia em percorrer a vida de uma forma
obsessivamente determinada, circulando entre duas linhas imaginárias, paralelas, estreitas, que definiam o seu comportamento. O seu vício estava ali: não se
afastar nunca da certeza, da regularidade, da normalidade estatística, do
correcto e do comedimento. Ironicamente, talvez o seu vício fosse a sua salvação.
Não
fumava, não bebia, não jogava. Viciara-se no equilíbrio, e a consequência dessa dependência era um voo de alma de amplitude quase nula.
(...)
Alberto Catarino Carvalho, in Crónicas de uma Viagem à Beira (Edição do autor, 2008)
1 comentário:
Tenho estado ausente dos seus blog e dos seus textos que são uma "quase adição diária" ou como alguém dizia há anos a propósito de outras coisas, um "quase amor".
Sinto falta da sua escrita não só porque me inspira, sossega e anima, mas também porque gosto...simplesmente gosto.
Estes dois últimos são prova disso.
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