Todas as
famílias felizes são iguais. As infelizes são-no cada uma à sua maneira (Tolstoi, in Ana Karenina).
A frase não me é recente no ouvido, talvez o seja no pensamento. Nas últimas semanas, por motivos que se
prendem com a amizade que tenho por pessoas, e com as conversas que vou tendo com quem me ouve, me fala e me alerta, a citação
surgiu-me à boca da mente, numa espécie de peço licença para se evidenciar e ser o
princípio de um escrito. Ou, melhor ainda, como quem se arroga o direito de ser
a condensação de ideias certas – e seguramente esquecidas.
Ao longo da minha vida fui acompanhando pessoas que sofriam. Uso o verbo
acompanhar na sua definição menos
nobre: ir na direcção de... Num ou
noutro caso a consciência permite-me a elevação de espírito e referir o estar ou ficar junto de (alguém).
Talvez fosse mais correcto afirmar, se a simplicidade fosse o meu forte, que vi pessoas sofrerem, porque acompanhar seria um upgrade a que nem
sempre me atrevo. Em boa verdade, o facto é que conheço gente que sofreu, que
passou por maus bocados, que chorou intimamente ou numa roda de amigos, que se
armou em valente para não maçar ninguém, que fingiu armar-se em valente ou que
fingiu não querer maçar ninguém. Gente houve que sofreu por muito, por pouco,
por assim assim, por aparentes ninharias ou por coisas que deitam abaixo o mais
resistente. Gente houve que sofreu pela incapacidade de inverter o rumo dos
acontecimentos, pelo infortúnio da vida que está fora das nossas mãos, pela má
escolha dos caminhos trilhados.
A visão do padecimento alheio pode ser um exercício de aproximação assente,
tantas e tantas vezes, numa tentativa e erro. Se nos aproximarmos muito, temos
a visão de um pormenor apenas, de um detalhe tão mais ínfimo quanto mais
próximos estivermos; ao afastarmo-nos, vemos a pessoa na sua totalidade; se
nos distanciarmos ainda mais, aquele que sofre é um vulto contra um horizonte vasto.
(Que não se leia afastamento como um
desinteresse, mas apenas como o exercício de uma distância que não tem
conotação negativa). O que queremos nós ver? O pormenor, a pessoa, ou a grande
fotografia? E o que é importante que vejamos para que se cumpra a função da simpatia, se não se cumprir a da compaixão? Em bom rigor não há distâncias erradas, apenas atitudes erradas.
Confesso que não sei a resposta. Coloquei-me, muitas vezes, a uma distância mental que não me tolhesse a noção da relatividade das coisas, porque isto é maior do que aquilo, e há aqueles com quem a comparação é uma pedagogia, pelo tanto que passaram. Estou convicto de que uma vezes acertei, outras falhei, uma estatística que abre caminho à melhoria contínua – algo entre o convencimento
da certeza permanente e o desespero da falha sistemática. Momentos há em que os discursos de conforto podem ser desajeitados, egocêntricos, esmagadores, tornando-nos num receitador de poções mágicas para consumos universais. Momentos há em que não discernimos a posição relativa onde devemos colocar-nos, porque ao sucesso próprio pode corresponder uma trituração alheia. O erro que se repete, estou em
crer, é duplo: um, acreditar que pessoas diferentes têm de usar fórmulas de cura iguais, como se houvesse uma receita salvífica que se adequasse à diversidade
humana; dois, esquecer que todas as
famílias felizes são iguais, mas que as infelizes o são cada uma à sua maneira.
Deixo-vos com o senhor
Ramón Emílio Valdés, mais conhecido como Bebo Valdés, recém desaparecido.
JdB
1 comentário:
Nunca sabemos, pois não?
No outro dia um tímido, distante, socio-independente, dizia-me a propósito de um amigo." O J sabe perguntar, percebe-se que não só quer saber da história, mas acima de tudo quer saber de nós.Tenho amigos de há 40 anos que não me fazem perguntas, ignoram, fazem de conta que não percebem!"
Será isto injusto perguntava eu? Será que os amigos de há 40 anos também são daqueles que acham que não devemos perguntar com medo de invadir o espaço alheio? é difícil, sabe? e parece-me quanto maior o grau de intimidade, mais depressa esperamos que quem sofre, se abra e nos deixe entrever as suas dores.
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