Coincidências. Na semana passada vendi o meu último carro profissional, com que tinha ficado quando saí da Lever. Depois de peripécias várias, que ainda persistem, acordei o valor com o comprador. Eram 13.30h do dia 16 de Maio quando o olhei pela última vez, passados quase 11 anos. Os meus filhos perguntaram-me se não tinha tido nostalgia. A resposta foi rápida: nenhuma! Não tenho qualquer afeição a carros, pouco mais são do que objectos que cumprem a missão de me transportar do lugar A para o lugar B. Nesse dia à tarde soube que àquela exacta hora e dia (13.30h, 16 de Maio) era comunicado aos trabalhadores da fábrica Lever, na cantina onde almocei milhares de vezes, que a fábrica ia fechar. Isso sim, foi nostalgia, porque iria desaparecer o local onde aprendi (quase) tudo o que sou profissionalmente. Curiosamente, no dia em que despachei o carro que utilizei durante quatro anos ao serviço de mais uma indústria que desaparece. Ele há coincidências...
Confiança. Fizemos o paredão na semana passada, como fazemos tantas vezes. Falámos de fulana, uma amiga comum, mas a quem nos liga uma militância de intensidade desigual. Fulana tem um filho muito adulto que é, pelas suas limitações físicas e mentais, fortemente dependente. Da vida profissional de fulana e do marido não pode dizer-se que seja difícil, porque isso seria um exagero elogioso. De facto, na maior parte das vezes será inexistente. Terão uma vida financeira que se classificaria de milagre económico, porque os rendimentos estão numa escala muito abaixo do reduzido. Não são vidas difíceis. São vidas muito difíceis, a roçar o quase impossível.
No entanto, de fulana não se vê nem se ouve um queixume, uma revolta, uma apatia depressiva. Vejo-a raramente, mas avança sempre com um sorriso franco, aberto - e continuado. A persistência, garantem-me, mantém-se ao longo dos anos, porque a situação nunca foi particularmente melhor do que é agora. Um filho fortemente deficiente e muito pouco dinheiro é uma mistura que não desejamos a um inimigo. De onde lhe vem, perguntamos então, este sorriso? Vem da Fé? Vem da Confiança? E, se sim, em quê e em quê, uma pessoa que olha para o futuro e não vê o sorriso que ela própria tem permanente?
Não sei, de facto. Talvez seja Fé na vida, no que faz sentido (que é diferente do que tem de ser), em Deus, na inevitabilidade das coisas, em Nossa Senhora, na presença dos amigos. Talvez seja a Confiança que advém da aceitação da injustiça terrena, do fatalismo dos desequilíbrios mas, também, a confiança que lhe vem da energia da alma, da força inquebrantável com que vive, da convicção que Deus às vezes dá o frio conforme a roupa.
Podemos viver sem Fé (no sentido religioso da palavra) mas não podemos viver sem confiança, sob risco do edifício que nos sustenta ruir por excesso de tensão interna. Talvez fulana tenha sido agraciada com tudo - aquilo que é desejável e aquilo que é imprescindível -, e viva nesta certeza sossegada de que há caminhadas agrestes mas que, apesar disso, pode confiar no sentido das coisas, no mistério que é existir, nos olhos que não se desviam, na esperança de mais um emprego temporário, nas cruzes injustas que a levam ao Céu, no amor retribuído de um filho adulto a quem ela faz a barba com desvelo.
Confiar é acreditar que na vida tudo tem uma solução. Confiar é saber que precisamos de procurar e construir o nosso caminho, mas que há alturas em que devemos fechar os olhos, descansar a alma e os braços, e acreditar que a nossa existência é um puzzle cujas peças tendem para o encaixe. É ter, tantas vezes, o olhar simples de uma criança que acha que ser pequeno e ter esperança no destino são coisas boas. Confiar, confiar, confiar. Estará aí a solução para muitos problemas?
Fotografia que o homem de Azeitão me mandou quando lhe pedi algo relacionado com confiança... |
Textos (enviado por mão amiga). Alguém dizia: "quando começamos a ter todas as respostas, a vida vem e troca-nos as perguntas". E é bem verdade: seja pela idade, que vai trazendo novidades; seja pelos tempos, que trazem novas relações, novas situações, novas tensões; estamos sujeitos a uma constante metamorfose interior e exterior. Com isso, a vida vai pedindo que não fiquemos satisfeitos com os passos dados; a vida exige que não nos fechemos nas respostas alcançadas. Nascemos peregrinos e sê-lo-emos até ao fim. Ou seja, até ao regresso definitivo a Casa (João Delicado, sj).
JdB
3 comentários:
Bom, como sempre!
abr
fq
Que maravilha!
Que bela inspiração!
É tão bom perceber que há sempre um novo sopro e que nunca se esgota...
Continua a ser mestre de Serendip mas também da confiança, gostei tanto da sua meditação!
Beijinhos agradecidos
Alguma vez se perguntou a si próprio porque às vezes precisamos daquela música triste, porque gostamos daquele fado, porque até procuramos um bocadinho de melancolia? É estranho não é? Mas se alguma vez conseguir olhar a tristeza sem tentar fugir dela, sem dar-lhe imediatamente um nome, sem querer imediatamente reconhecé-la e por-lhe fim, ela deixará que veja nela toda essa estranha doçura.
Não é feliz quem conhece apenas a beleza e a alegria, é feliz quem vê também aquela suave ternura da tristeza ou do que é menos bonito.
A luz dos olhos dessa mãe provavelmente não é bonito, não é procurado, não tem sucesso, talvez seja esquecido pelas pessoas mas ela - valente mãe que é - encontrou o Amor na imperfeição que a vida lhe confiou.
E quem vê o belo no feio, o bom no mau, acaba por ter luz na escuridão e vida na morte.
A vida não tem soluções de continuidade; a verdadeira sorte é aperceber-se disso.
ps. O homem de Azeitão é um grande artista. Que imagem tão bonita.
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