30 janeiro 2014

Concurso de Escrita Criativa

Eis o desafio desta semana: Um homem, distraído, entra no apartamento errado à hora errada.
Desenvolva, usando não mais de 400 palavras.

Abaixo a minha contribuição

***

Roberto empurrou a porta de casa, vagamente espantado por descortiná-la entreaberta.
Homem dado a hábitos, seguiu as suas rotinas. Viu tudo, observou tudo, como sempre fazia quando entrava no 3º esquerdo onde morava, mesmo que visse a repetição, excepto numa madeixa milimetricamente desalinhada no cabelo moreno de Anabela, a sua companheira dos últimos três anos.
Só parte do cérebro de Roberto era absorto. O seu olhar peregrino devia-se, não a uma distracção do olhar que não se prende a nada, mas a um desejo absurdo de constância e imobilidade. A sua atenção residia num anseio de procurar a desconformidade da vida plasmada numa moldura fora do sítio, num quadro de feira vagamente desenquadrado do paralelismo arquitectónico. Em tudo o resto, Roberto era distraído – esquecia-se das horas, da uniformidade das meias, da estética mínima da roupa, das reuniões que preparam futuros ou analisam passados.
Como sempre – e a repetição reforça a importância das coisas – Roberto viu tudo, observou tudo: o desgraçado Coração de Jesus, a vela de cor abaunilhada, uma fotografia de Praga, outra de Benidorm. Na cozinha, a fruteira em porcelana concêntrica, de três andares, o crochet tridimensional a tapar o fogão, o quadro com o rol de afazeres – marcar pedicura, trocar sanita, lentilhas, sopa de rabo de boi. Viu ainda o piano vertical, uma bola de basquete encostada a um louceiro, uns cortinados de cassa agitando-se na mansidão do fim de tarde.
Mudou sequencialmente de sentidos: visão – olfacto – audição. Cheirou-lhe a caril de galinha, a pão esquecido na torradeira, a ambientador automático que espirra a cada três minutos. Ao longe, mas suficientemente perto, ouviu risadas, uma masculina e uma feminina, entrecortadas de frases sensuais: deixa, não te mexas, amo-te tanto, está quase, isso isso, agora, ai que bom.  
Todo este processo – o divino, a cozinha, os aromas, as frases – demorou quinze segundos. Roberto permaneceu aparentemente impassível, a não ser um aumento quase imperceptível do pestanejar dos olhos. Viu, cheirou, ouviu. Era ateu, detestava caril, a sanita estava irrepreensível, o companheiro de Anabela era ele. Retomou o processo e disse alto, porque era distraído e olvidava que falava só para si:
- a fotografia da mamã? Onde está a fotografia da mamã?
Só então percebeu o equívoco, porque saíra do elevador e invertera o sentido da curva. Aquele – o apartamento da bola de basquete, da fruteira, do crochet – era o direito.
A ausência da fotografia da mamã fixara-lhe o raciocínio.

JdB

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