Eis o desafio desta semana: Um homem, distraído, entra no apartamento errado à hora errada.
Desenvolva, usando não mais de 400 palavras.
Abaixo a minha contribuição
***
Roberto empurrou a porta de
casa, vagamente espantado por descortiná-la entreaberta.
Homem dado a hábitos, seguiu as
suas rotinas. Viu tudo, observou tudo, como sempre fazia quando entrava no 3º
esquerdo onde morava, mesmo que visse a repetição, excepto numa madeixa milimetricamente
desalinhada no cabelo moreno de Anabela, a sua companheira dos últimos três
anos.
Só parte do cérebro de Roberto
era absorto. O seu olhar peregrino devia-se, não a uma distracção do olhar que
não se prende a nada, mas a um desejo absurdo de constância e imobilidade. A
sua atenção residia num anseio de procurar a desconformidade da vida plasmada
numa moldura fora do sítio, num quadro de feira vagamente desenquadrado do
paralelismo arquitectónico. Em tudo o resto, Roberto era distraído –
esquecia-se das horas, da uniformidade das meias, da estética mínima da roupa, das
reuniões que preparam futuros ou analisam passados.
Como sempre – e a repetição
reforça a importância das coisas – Roberto viu tudo, observou tudo: o
desgraçado Coração de Jesus, a vela de cor abaunilhada, uma fotografia de
Praga, outra de Benidorm. Na cozinha, a fruteira em porcelana concêntrica, de
três andares, o crochet tridimensional a tapar o fogão, o quadro com o rol de
afazeres – marcar pedicura, trocar sanita, lentilhas, sopa de rabo de boi. Viu
ainda o piano vertical, uma bola de basquete encostada a um louceiro, uns
cortinados de cassa agitando-se na mansidão do fim de tarde.
Mudou sequencialmente de
sentidos: visão – olfacto – audição. Cheirou-lhe a caril de galinha, a pão esquecido
na torradeira, a ambientador automático que espirra a cada três minutos. Ao
longe, mas suficientemente perto, ouviu risadas, uma masculina e uma feminina, entrecortadas
de frases sensuais: deixa, não te mexas,
amo-te tanto, está quase, isso isso, agora, ai que bom.
Todo este processo – o divino,
a cozinha, os aromas, as frases – demorou quinze segundos. Roberto permaneceu
aparentemente impassível, a não ser um aumento quase imperceptível do pestanejar
dos olhos. Viu, cheirou, ouviu. Era ateu, detestava caril, a sanita estava
irrepreensível, o companheiro de Anabela era ele. Retomou o processo e disse
alto, porque era distraído e olvidava que falava só para si:
- a fotografia da mamã? Onde
está a fotografia da mamã?
Só então percebeu o equívoco,
porque saíra do elevador e invertera o sentido da curva. Aquele – o apartamento
da bola de basquete, da fruteira, do crochet – era o direito.
A ausência da fotografia da
mamã fixara-lhe o raciocínio.
JdB
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