20 janeiro 2014

Vai um gin do Peter’s?

Na Gulbenkian, até 26 de Janeiro, está uma exposição sobre um dos ex-libris da arte portuguesa – o azulejo(1).  Como observa o texto introdutório da mostra, haverá quase um excesso de familiaridade e risco de banalização por parte dos portugueses face a este material artístico tão comum no seu horizonte. Daí que são, sobretudo, os estrangeiros a associar Portugal à azulejaria, reconhecendo-lhe o valor e a raridade.

As origens desta arte não podiam ser mais honrosas, nos magníficos revestimentos dos palácios persas. A sua rápida disseminação por todo o mundo islâmico, com especial apetência por padrões simétricos, sem a figuração humana, chegou à Península Ibérica através da presença árabe, oriunda do Norte de África. Em Portugal, incorporou-se na arquitectura local, encontrando estilos próprios com ligeiras adaptações regionais. As facilidades de fabrico oferecidas pela Revolução Industrial deram um novo impulso a esta arte, surgindo obras de autor em toda a Europa e Médio Oriente, muito apreciadas pela Arte Nova e pelo modernismo do século XX. Nela se evidenciam as correlações e permutas culturais entre o Oriente e Ocidente, merecendo bem o título cunhado pela Fundação: «O Brilho das Cidades. A Rota do Azulejo».

Em inglês, assumiu uma designação ainda mais sugestiva: «The splendour of the Cities». Basta ver (em Berlim) o esplendor do legado da Babilónia para se esbarrar com um dos expoentes do revestimento cerâmico de exterior, num azul de uma beleza indizível. Muito para lá das possibilidades da palavra, deslumbra e comove.


Porta de Ishtar, no Museu Pergamon de Berlim. Legado mesopotâmico da cidade da Babilónia, erigida no reinado de Nabucodonosor II. Chegou a ser uma das Sete Maravilhas da Antiguidade. 

Arqueiros babilónios, no Pergamon de Berlim.
Há réplicas persas na exposição, com colorido em pior estado de conservação.  



Mais do que determo-nos no descritivo desta expressão artística, valerá a pena passear por entre as mais de 200 peças(2) reunidas na Gulbenkian, com pena de não as conseguir nomear todas. Por isso, será apenas um aperitivo, como calha a um gin. Aliás, nem todas as imagens aqui postadas constam da exposição, embora sejam expressivas do que lá figura e do contributo do azulejo para o brilho das cidades.

Os quadrados cerâmicos vidrados consagraram-se como arte maior nos grandes murais dos magníficos monumentos persas e mesopotâmios (séc. VI a.C.), de reflexos e cromatismo fulgurantes, muito ao gosto dos impérios orientais. A par da Pérsia, também o Egipto e a Assíria da Antiguidade recorreram a este material, pois além de embelezar os edifícios de referência, conferia-lhes maior durabilidade.

Inspirando-se na exuberância dos padrões têxteis, a preferência muçulmana pela simetria geométrica e o horror ao vazio encontrou no revestimento cerâmico (lajes, azulejos, mosaicos) um recurso arquitectónico especialmente versátil, que depois foi enriquecido com a luminosidade do ouro.

Templos no Uzbequistão

Em Portugal, a herança árabe conformou-se ao gosto harmonioso dos azulejos de repetição lusitanos, com alternância de um par de cores, modelos enxaquetados e de pontas de diamantes, entre outros, emoldurados por cercaduras de contraste, de uma beleza muito sofisticada, precisamente pela sua extrema simplicidade. A partir do século XVI, com o manuelino, a azulejaria aumentou ligeiramente a paleta de tons e tomou formas mais arrojadas, aplicadas em figuras de convite e figuras recortadas, lambris profusamente coloridos, pórticos gigantes, contornos de arcos, frisos de remate ou painéis de grandes composições, que transformaram pequenos espaços em jóias esplendorosas:


Interior da Igreja de S.Sebastião da Pedreira (perto do Corte Inglês)

Capela do Mosteiro de S.Vicente de Fora, hoje sede do Patriarcado.

As culturas onde as inscrições e a simbologia gráfica ocuparam lugar de relevo, souberam plasmar as suas mensagens no azulejo. Assim foi com os versículos do Corão nas Mesqfuitas muçulmanas ou os painéis de cenas religiosas nos mosteiros cristãos ou as marcas de afirmação de poder e demarcação de território, nomeadamente através da heráldica, nos espaços públicos e privados peninsulares. Na Gulbenkian, as salas ilustrativas deste tipo de aplicação têm títulos eloquentes: «Paredes que falam», «Arquitecturas escritas», «O poder da imagem» e até a «Doutrinação» para aludir à sua disseminação em pavimentos, paredes, tectos, colunas e abóbadas, tabuletas e sinalética urbana, cercaduras e telas ornamentais.

Durante o Renascimento italiano, os painéis ao gosto romano marcaram a nova tendência, inspirando-se nos achados de Pompeia e Herculano, a representar cenas mitológicas, paisagens ficcionadas e composições florais.

O progresso tecnológico do século XIX relançou o gosto pela azulejaria, favorecendo as obras de autor que proliferaram por toda a Europa, da Alemanha a Itália, passando por França, Bélgica, Espanha, Grã-Bretanha, além de Portugal.

Rãs e nenúfares de Rafael Bordalo Pinheiro, 1904.
Produção da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.

Adaptando-se ao espírito do tempo, implantaram-se em jardins, entradas de sedes de empresas e instituições oficiais, fachadas de prédios, escadarias, baixos-relevo e tudo o mais que pudesse decorar os espaços. 


Na exposição: obra de Max Laeuger, Alemanha, 1908-1909.

Gaudí no seu melhor, em Barcelona.

De tal modo a azulejaria portuguesa abrange um património incontível num local único, que se poderia tomar o país – continente e ilhas – por um circuito expositivo de escala nacional. Na Gulbenkian, a pequena mostra lusa dialoga com peças turcas do núcleo Iznik da Fundação, vestígios da Antiguidade, obras sírias, egípcias, holandesas, tunisinas, italianas e de outras nacionalidades já referidas. Novidade é vê-las juntas, facilitando a descoberta das inúmeras afinidades entre dois blocos civilizacionais de convivência nem sempre pacífica, onde Portugal soube ser um elo de ligação incontornável, ao longo dos séculos. O azulejo é disso prova!

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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 (1) http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Agenda/Exposicoes/Exposicao?a=4411
 (2) «Os temas propostos serão o mito da cerâmica dourada, as conquistas da geometria, a importância da heráldica, o peso da cultura figurativa clássica, o valor da mitologia cristã, a mimese ou a estilização da Natureza, o reflexo dos géneros da grande pintura europeia, a influência dos tecidos e a representação da utopia e do quotidiano.

Entre as instituições internacionais que cederam obras para esta mostra estão o Museu do Louvre, o Museu dOrsay, o Museu de Artes Decorativas, o Museu do Quay Branly e o Centro Pompidou, (Paris), o Museu Nacional de Cerâmica (Sèvres), o Museu Nacional da Renascença (Écouen). Também (há) peças do Instituto Valência de Don Juan (Madrid), o Museu de Belas Artes (Sevilha), o Museu do Design de Barcelona, e o Museu Nacional de Cerâmica González Martí, (Valência). De Bruxelas estão representados os Museus Reais de Arte e de História, e da Holanda o Museu Municipal da Haia e o Museu Boijmans-van Beuningen, em Roterdão. Além das peças do Museu Gulbenkian, (estão) incluídas obras de outros museus portugueses (...) bem como (de) colecções particulares (…).» (in Rev. Lusofonia)


Detalhe de um painel nas escadarias da av.Infante Santo – Lisboa, anos 50.

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