Na Gulbenkian, até 26 de
Janeiro, está uma exposição sobre um dos ex-libris da arte portuguesa – o azulejo(1). Como
observa o texto introdutório da mostra, haverá quase um excesso de familiaridade
e risco de banalização por parte dos portugueses face a este material artístico
tão comum no seu horizonte. Daí que são, sobretudo, os estrangeiros a associar
Portugal à azulejaria, reconhecendo-lhe o valor e a raridade.
As origens desta arte não
podiam ser mais honrosas, nos magníficos revestimentos dos palácios persas. A
sua rápida disseminação por todo o mundo islâmico, com especial apetência por
padrões simétricos, sem a figuração humana, chegou à Península Ibérica através
da presença árabe, oriunda do Norte de África. Em Portugal, incorporou-se na
arquitectura local, encontrando estilos próprios com ligeiras adaptações regionais.
As facilidades de fabrico oferecidas pela Revolução Industrial deram um novo
impulso a esta arte, surgindo obras de
autor em toda a Europa e Médio Oriente, muito apreciadas pela Arte Nova e
pelo modernismo do século XX. Nela se evidenciam as correlações e permutas
culturais entre o Oriente e Ocidente, merecendo bem o título cunhado pela
Fundação: «O Brilho das Cidades. A Rota
do Azulejo».
Em inglês, assumiu uma
designação ainda mais sugestiva: «The
splendour of the Cities». Basta ver (em Berlim) o esplendor do legado da
Babilónia para se esbarrar com um dos expoentes do revestimento cerâmico de
exterior, num azul de uma beleza indizível. Muito para lá das possibilidades da
palavra, deslumbra e comove.
Porta de Ishtar,
no Museu Pergamon de Berlim. Legado mesopotâmico da cidade da Babilónia, erigida
no reinado de Nabucodonosor II. Chegou a ser uma
das Sete Maravilhas da Antiguidade.
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Arqueiros babilónios, no Pergamon de Berlim.
Há réplicas persas na exposição, com colorido em pior
estado de conservação.
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Mais do que determo-nos
no descritivo desta expressão artística, valerá a pena passear por entre as mais
de 200 peças(2) reunidas na Gulbenkian, com pena de não as conseguir
nomear todas. Por isso, será apenas um aperitivo, como calha a um gin. Aliás, nem todas as imagens aqui
postadas constam da exposição, embora sejam expressivas do que lá figura e do contributo
do azulejo para o brilho das cidades.
Os quadrados cerâmicos
vidrados consagraram-se como arte maior nos grandes murais dos magníficos
monumentos persas e mesopotâmios (séc. VI a.C.), de reflexos e cromatismo
fulgurantes, muito ao gosto dos impérios orientais. A par da Pérsia, também o Egipto
e a Assíria da Antiguidade recorreram a este material, pois além de embelezar os
edifícios de referência, conferia-lhes maior durabilidade.
Inspirando-se
na exuberância dos padrões têxteis, a preferência muçulmana pela simetria
geométrica e o horror ao vazio encontrou no revestimento cerâmico (lajes,
azulejos, mosaicos) um recurso arquitectónico especialmente versátil, que
depois foi enriquecido com a luminosidade do ouro.
Em
Portugal, a herança árabe conformou-se ao gosto harmonioso dos azulejos de
repetição lusitanos, com alternância de um par de cores, modelos enxaquetados e
de pontas de diamantes, entre outros, emoldurados por cercaduras de contraste, de
uma beleza muito sofisticada, precisamente pela sua extrema simplicidade. A
partir do século XVI, com o manuelino, a azulejaria aumentou ligeiramente a
paleta de tons e tomou formas mais arrojadas, aplicadas em figuras de convite e figuras recortadas, lambris profusamente
coloridos, pórticos gigantes,
contornos de arcos, frisos de remate ou painéis de grandes composições, que transformaram
pequenos espaços em jóias esplendorosas:
Interior da Igreja de
S.Sebastião da Pedreira (perto do Corte Inglês)
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Capela do Mosteiro de
S.Vicente de Fora, hoje sede do Patriarcado.
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As
culturas onde as inscrições e a simbologia gráfica ocuparam lugar de relevo,
souberam plasmar as suas mensagens no azulejo. Assim foi com os versículos do
Corão nas Mesqfuitas muçulmanas ou os painéis de cenas religiosas nos mosteiros
cristãos ou as marcas de afirmação de poder e demarcação de território, nomeadamente
através da heráldica, nos espaços públicos e privados peninsulares. Na Gulbenkian,
as salas ilustrativas deste tipo de aplicação têm títulos eloquentes: «Paredes
que falam», «Arquitecturas escritas», «O poder da imagem» e até a «Doutrinação»
para aludir à sua disseminação em pavimentos, paredes, tectos, colunas e
abóbadas, tabuletas e sinalética urbana, cercaduras e telas ornamentais.
Durante o Renascimento
italiano, os painéis ao gosto romano
marcaram a nova tendência, inspirando-se nos achados de Pompeia e Herculano, a
representar cenas mitológicas, paisagens ficcionadas e composições florais.
O progresso tecnológico
do século XIX relançou o gosto pela azulejaria, favorecendo as obras de autor que proliferaram por toda
a Europa, da Alemanha a Itália, passando por França, Bélgica, Espanha,
Grã-Bretanha, além de Portugal.
Rãs e nenúfares de Rafael Bordalo Pinheiro, 1904.
Produção da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.
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Adaptando-se ao espírito
do tempo, implantaram-se em jardins, entradas de sedes de empresas e
instituições oficiais, fachadas de prédios, escadarias, baixos-relevo e tudo o
mais que pudesse decorar os espaços.
Na exposição: obra de Max Laeuger, Alemanha, 1908-1909.
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Gaudí no seu melhor, em
Barcelona.
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De tal modo a azulejaria
portuguesa abrange um património incontível num local único, que se poderia
tomar o país – continente e ilhas – por um circuito expositivo de escala
nacional. Na Gulbenkian, a pequena mostra lusa dialoga com peças turcas do
núcleo Iznik da Fundação, vestígios da Antiguidade, obras sírias, egípcias,
holandesas, tunisinas, italianas e de outras nacionalidades já referidas.
Novidade é vê-las juntas, facilitando a descoberta das inúmeras afinidades
entre dois blocos civilizacionais de convivência nem sempre pacífica, onde Portugal
soube ser um elo de ligação incontornável, ao longo dos séculos. O azulejo é
disso prova!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1) http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Agenda/Exposicoes/Exposicao?a=4411
(2) «Os temas
propostos serão o mito da cerâmica dourada, as conquistas da geometria, a
importância da heráldica, o peso da cultura figurativa clássica, o valor da
mitologia cristã, a mimese ou a estilização da Natureza, o reflexo dos géneros
da grande pintura europeia, a influência dos tecidos e a representação da
utopia e do quotidiano.
Entre as instituições internacionais
que cederam obras para esta mostra estão o Museu do Louvre, o Museu dOrsay, o
Museu de Artes Decorativas, o Museu do Quay Branly e o Centro Pompidou,
(Paris), o Museu Nacional de Cerâmica (Sèvres), o Museu Nacional da Renascença
(Écouen). Também (há) peças do Instituto Valência de Don Juan (Madrid), o Museu
de Belas Artes (Sevilha), o Museu do Design de Barcelona, e o Museu Nacional de
Cerâmica González Martí, (Valência). De Bruxelas estão representados os Museus
Reais de Arte e de História, e da Holanda o Museu Municipal da Haia e o Museu
Boijmans-van Beuningen, em Roterdão. Além das peças do Museu Gulbenkian, (estão)
incluídas obras de outros museus portugueses (...) bem como (de) colecções
particulares (…).» (in Rev. Lusofonia)
Detalhe de um painel nas escadarias da av.Infante Santo –
Lisboa, anos 50.
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