Cada ser
humano é auto-suficiente, não se definindo em relação a qualquer comunidade
definidora
Penso
que podia modificar-me e viver com os animais,
eles são tão serenos e reservados,
Quando
me detenho a contemplá-los demoradamente,
Alheios
por condição a queixas e fadigas,
Não
estão acordados de noite a chorar os seus pecados,
Não
me incomodam a discutir os seus deveres para com Deus,
Nenhum está
descontente, nenhum endoideceu com a mania de possuir bens,
Nenhum se
ajoelha perante outro, nem perante antepassados que viveram milhares de anos
antes dele,
Nenhum é respeitável ou infeliz para o
universo inteiro.[1]
***
No século IV aC,
Demócrito usaria pela primeira vez a expressão Ἀταραξία - ataraxia – que significa tranquilidade da alma, ausência de
perturbação. O conceito exprimia um ideal de sabedoria, uma certa
invulnerabilidade racional face aos desgostos de vária ordem, às doenças, às
mortes dos mais próximos, a outras desgraças. A ataraxia, mais do que um
destino, seria um percurso – o que leva à imperturbabilidade. Para Epicuro, era
por aí que se alcançava a felicidade. “(...) trata-se de uma tranquilidade a
que se chega por via filosófica e não outra (...)”[2]. Séneca,
um dos grandes nomes do estoicismo, usaria, a este respeito, a expressão tranquilitas animis, título de um dos
seus tratados.
“A filosofia não é uma
habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espectáculo; a
filosofia não consiste em palavras, mas em acções. O seu fim não consiste em
fazer-nos passar o tempo com alguma distracção, nem em libertar o ócio do
tédio. O objectivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma,
em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos actos, em apontar-nos o que
devemos fazer ou pôr de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem
flutua à deriva entre escolhos.”[3]
Em A Conquista da
Felicidade[4],
Bertrand Russell disserta sobre nove causas para a infelicidade das pessoas: a
infelicidade byroniana, o espírito de competição, o aborrecimento e a agitação,
a fadiga, a inveja, o sentimento de culpa, a mania da perseguição, o medo da
opinião pública. Na segunda parte do livro
- As Causas da Felicidade – Russel espraia-se sobre aquilo que nos daria
felicidade: o gosto de viver, a afeição, a família, o trabalho, os interesses
impessoais, o esforço e a resignação.
Em que difere o universo
de Demócrito, de Séneca ou de Bertrand Russell e o nosso? Em muito. Em (quase)
tudo. Do filósofo grego, ou mesmo do filósofo romano, distantes de trezentos
anos, até hoje, inventou-se e descobriu-se um mundo de coisas – o carro, a
máquina a vapor, a revolução industrial, o casamento por amor, a física
quântica, os cristais de quartzo, a electricidade, a máquina de escrever, os
cheques bancários e os cartões de crédito, as armas de fogo e o sistema de rega
gota a gota, a cozinha de autor e a imprensa, os cruzeiros às Caraíbas e os
serviços ao domicílio.
Em 80 anos – o livro
de Bertrand Russell foi editado pela primeira vez em 1930 - o mundo ocidental
inventou a tecnologia e a aldeia global, o consumismo e o turismo de massas. Em
80 anos generalizou-se o voto, o conceito de liberdade e dos direitos humanos,
enraizou-se o ideal da democracia; deu-se voz às minorias, criou-se a internet
e as redes sociais, disponibilizou-se um telemóvel a cada cidadão, as vidas dos
ricos e dos famosos passaram a ser escrutinadas para gáudio dos curiosos. Em 80
anos deu-se acesso generalizado às universidades, diminuiu-se a mortalidade
infantil, aumentou-se a esperança de vida.
Muito se inventou e
criou em mais de dois mil anos para tornar a vida humana mais confortável, mais
sadia, mais reconfortante, mais alegre; muito nos distancia da Roma ou da
Grécia dos filósofos citados, ou mesmo da Inglaterra da primeira metade do
século passado. Podemos alterar ligeiramente um pensamento, fazer substituições
menores de palavras, actualizar a lista de factores geradores de infelicidade e
da sua inversa. No fim, o resultado é este: procuramos ser felizes, apesar das
diferentes expressões que damos a esse sentimento.
Nascemos, crescemos e
formamo-nos em engenharia aeronáutica, em obstetrícia ou em arquitectura,
quedamo-nos pela escolaridade mínima ou frequentamos cursos profissionais.
Trabalhamos numa fábrica ou num escritório, entregamos a nossa vida ao próximo
ou tentamos reproduzir, numa tela ou num busto, o mundo que vemos. Ensinamos,
vendemos roupa por trás de um balcão, investigamos os efeitos disto naquilo,
vendemos sonhos em forma de viagens ou de carros. Sentemos estes misteres numa só
sala, voltados uns para os outros. Apesar de todos os códigos que identificam
origens geográficas ou de berço, culturas e hábitos, há uma vontade semelhante
sussurrada da boca de todos os que se sentam nesta babel: o desejo de ser feliz.
A frase é comum, quer seja proferida com sotaque daqui ou dali, com uma
articulação mais criativa ou mais simples. E no entanto nada mais, para além da
frase, parece ser comum. A conquista da felicidade, na clausura de um convento
ou na partilha de uma tribo, é uma procura única, incompreendida porque
impartilhável. Nessa estrada que nos leva ao cume, cada ser é um cavaleiro
andante, solitário na vastidão da pradaria.
Saiamos da sala onde se junta a diversidade e atentemos nos
momentos de que se compõe a nossa vida: um jantar de amigos, uma esplanada ao
fim da tarde, um concerto de música clássica, uma loja que vende retrós. Cruzamo-nos
com um quadro numa exposição, um programa de televisão, uma igreja barroca ou
um quarto com vista sobre a cidade. Talvez mesmo um álbum de fotografias
anónimo, ainda que de paisagens conhecidas. À frente de cada observador existe
uma infinidade de pormenores, de detalhes – ou de coisas óbvias. O que vemos e
a que damos atenção? A resposta evidente, eivada do que se considera correcto,
é a perfeição da execução, o profissionalismo do jornalista, a focagem, a
vastidão da vista ou a estética da montra. Não obstante, esta espécie de camada
sobrenadante comum e, por isso, forçosamente desinteressante, esconde o encanto
daquilo que é próprio de cada indivíduo, e que é esmagado pela colectivização
dos pensamentos de hoje.
Cada um de nós é dono de olhos, nariz, sensibilidade, cérebro,
alma, dedos. E é por isso que, enquanto uns vêem entretenimento e técnica,
outros vêem a assimetria dos olhos da rapariga no fundo da esplanada, a suave
curvatura das costas da violinista, o anel exuberante do empregado da loja ou a
aba de um chapéu n’A Ronda da Noite. Outros ainda, desatentos do linguajar do
jornalista, fixam a atenção na senhora de meia idade que, na assistência, é
paga para rir ou aplaudir sob instrução. A atenção de cada um assemelha-se à
procura da felicidade: é única, incompreendida
porque impartilhável. Dos milhares de
olhos, cérebros, bocas, almas, que vêem o mesmo quadro, ouvem o mesmo concerto,
entram na mesma retrosaria, cada um busca o seu
detalhe, indiferente à opinião dos outros, absorto do que se considera correcto
ou lógico. É, mais uma vez, uma caminhada solitária.
Roland Barthes aborda o tema do detalhe aplicado à fotografia.
Há o studium - uma espécie de interesse humano geral pela fotografia que
nos remete para uma informação clássica, mais ou menos estilizada, mais ou
menos conseguida em função da mestria do fotógrafo: uma paisagem, um par de
velhos, um cão a dormir ao calor do verão. “... studium, que não significa, pelo menos imediatamente, o ‘estudo’
mas a aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento
geral, empolgado, evidentemente, mas sem acuidade particular”.[5] E há o punctum, um elemento que salta
da cena e nos trespassa, que vem perturbar o studium. “O punctum de uma fotografia é esse
acaso que nela me fere (mas também me modifica, me apunhala).”[6]
A que obedece este punctum, aplicável à fotografia de
Roland Barthes, mas cujo conceito pode ser replicado para a vida, porque a
nossa existência não é mais do que uma sucessão de fotogramas? Obedece ao âmago
de cada um, a um caminho interior que independe do mundo, da sociedade, do
grupo, das modas, do meio ambiente. O punctum,
esses pontos sensíveis que salpicam as fotografias, são algo intrinsecamente
individual, vagamente explicado à luz da genética e, menos ainda, das
influências do meio ambiente.
***
Viajamos, recolhemos
imagens dos países e das cidades, das pessoas e das paisagens; criamos redes de
amigos, de conhecidos, de colegas de trabalho; vemos, ouvimos e lemos;
coleccionamos livros, cachimbos, selos, fotografias anónimas, cartazes
tauromáquicos; temos memória dos avós, do cheiro a verão, da lentidão das
músicas, do sabor dos frutos em Setembro, dos corpos juntos e das mãos dadas no
escuro do cinema; criamos linguagens próprias, vocabulários familiares,
expressões que mais ninguém entende; respiramos, comemos, bebemos. Definimos o
que nos é imprescindível.
A nossa vida é uma criação permanente de famílias artificiais –
objectos, pessoas, lugares – com as quais queremos viver, sem as quais
definharíamos. Neste mistério que é existir, tudo levaria a crer que o
gregarismo seria indispensável e estabeleceria connosco uma relação biunívoca –
damos e recebemos, influenciamos e somos influenciados, definimos e somos
definidos. Apesar desta aparente certeza científica, o facto é que o nosso
destino é absolutamente único e irrepetível e, repiso, incompreendido porque
impartilhável. Naquilo que verdadeiramente interessa – a conquista da
felicidade, a procura da tranquilitas
animis - somos uma unidade fechada
que procura a coesão dos seus órgãos. A existência dos outros não é mais do que uma inevitabilidade física, uma espécie de
excrescência que medra agarrada ao nosso corpo, que pulsa e vive a ritmos
próprios – e que tem uma dimensão atempadamente descartável. No que toca ao
essencial – a demanda da ataraxia - somos auto-suficientes, como uma fábrica
que é, simultaneamente, fornecedora e cliente, produtora e consumidora. Por
isso, ausente de necessidades externas.
Isaiah Berlin afirmou: “quanto maior a área de não
interferência, maior a minha liberdade.”[7] Nascemos
para ser livres, crescemos para ser felizes, morremos na esperança do céu em
que cada um acredita. Ainda que rodeados de gente, de multidões estranhas, de
famílias artificiais, o que somos é o que nasce e morre connosco: o desejo de
uma ausência de perturbação, o pormenor que só nós vemos, o fio de luz num
altar que mais ninguém descortina. Somos como nascemos e como crescemos na
nossa harmonia íntima. O resto são adornos artificiais que nada acrescentam a
um figurino que é nosso – exclusivamente nosso. A auto-suficiência de cada ser
humano, esta espécie de estanqueidade à comunidade envolvente é um facto, uma
necessidade, uma condição de sobrevivência. É a nossa liberdade, de olhos
postos no sossego que perdura.
Penso
que podia modificar-me e viver com os animais...
(* trabalho final da cadeira de Famílias Artificiais)
[7] No original: “the wider the area of non-interference
the wider my freedom (conferência inaugural na Universidade de Oxford (1957)
subordinada ao tema: “Two concepts of liberty”).
1 comentário:
Aposto que teve 20, João. :-)
Gostei muito de o ler.
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