O filme indiano «A LANCHEIRA»(1) é uma autêntica filigrana afectiva, expressiva
da intensidade de comunicação que consegue perpassar através de insignificantes
bilhetes de recados, telegráficos, transportados na lancheira do almoço e escondidos
pela panqueca. Tudo muito oriental, no seu melhor.
Nada a ver com os
musicais românticos das mega-produções de Bollywood pensadas para entreter as
multidões que se acotovelam nas salas de cinema indianas. A LANCHEIRA terá, antes,
sido concebida para consumo no Ocidente, mais adepto das introspecções e constantes
dissecações à escolha de vida tomada, num esforço de consciencialização, que
procura exercer maximamente a liberdade. Entendendo-se aqui liberdade pelo esticar ao limite a possibilidade de optar,
onde o risco de resvalar para a fantasia aumenta na proporção directa do afã de
procurar sempre novas alternativas, deixando de se filtrar as miragens. E são
tantas.
Acumulam-se muitos
aspectos interessantes neste filme de Ritesh Batra, com co-produção francesa e
alemã. O tema que serve de pretexto narrativo – o culto da arte da mesa – não
podia estar mais em voga no mundo ocidental, onde os Chefes de cozinha são os
druidas do nosso tempo. Hoje, a capacidade de pôr no prato as matérias menos
comestíveis tornou-se uma proeza merecedora de estrelas Michellin e fama a
rodos. Num certo sentido, viraram os
reis Midas da actualidade, bem à medida das preferências do cidadão comum.
Vivemos numa época que concilia atracções tão díspares quanto as explorações espaciais
e um hobby empenhado em elevar aos píncaros a mera satisfação de uma
necessidade elementar. Naturalmente que envolta num ritual complexo, com acrobacias
nutritivas que disfarçam toda a componente primária associada a comer para sobreviver, agora transformada num divertimento maior. E de luxo.
Voltando a "A LANCHEIRA": nem
tudo o que parece é. Claro que o talento culinário daquelas mãos mágicas (de
Ila), inicialmente apostadas em reconquistar um marido fugidio, é unanimemente aclamado!
Mas as intenções mais profundas de uns e de outros vêm a revelar-se bem
diferentes dos propósitos declarados. Fica a dúvida se, antes de nós, são os
próprios a estar equivocados sobre as suas reais intenções, que só no tempo se
desvendam e clarificam. Sabemos como o autoconhecimento exige tempo. Por vezes,
toda uma vida…
Um caso flagrante do desencontro
de intenções – entre as afirmadas e as que despontam no coração, numa zona
talvez cega para o próprio – está na difícil
tarefa de seduzir o marido longínquo através da comida. O almoço passaria a atracção
fatal, repartido pela correnteza de latinhas encavalitadas, a formar as
célebres lancheiras onde se transportam as refeições de milhões de indianos.
Mal arranca o plano, um
lapso vem perturbar tudo: os eficientíssimos estafetas desviam a lancheira de Ila,
pelo que o feliz contemplado não será o marido, mas um viúvo frustrado e mal
disposto.
Como estava híper segura
dos seus dotes culinários, sob a batuta profissionalíssima (e divertidíssima)
da tia, a falta de reacção do marido levam-na a concluir que ele não recebera
as suas iguarias. Nem mesmo a surpresa da tia, incrédula por não haver memória
de falhas no sistema, a fazem vacilar na sua dedução! A ponto de enviar um
recado ao destinatário fantasma, confirmando o engano. Curiosamente, não quis
corrigi-lo, preferindo oficializar o novo circuito para paradeiro desconhecido.
Nem sabia se era um ou uma a deliciar-se com as suas especialidades. E nem as queixas
posteriores do marido, condenado a um menu repetitivo e desengraçado, a fazem rectificar
a morada. Desistira de usar a sua melhor arma para salvar o casamento, que fora
o objectivo da investida nos tachos e panelas.
Entretanto, o
desconhecido responde à primeira mensagem e começa uma troca de correspondência,
através da lancheira, entre dois estranhos, ela com nome próprio, ele
(Fernandes) resguardado no anonimato. Isto durou um mês, até ao dia da reforma
do contabilista presenteado com comida de marajá. Nessa altura, desejosa de
conhecer o novo amigo-fantasma, Ila não hesita em confrontar o transportador
com o erro prolongado, obrigando-o a guiá-la até à secretária da morada errada.
Mas já outro a ocupava. Chegara demasiado tarde. São de gargalhada os
argumentos do transportador a defender a fiabilidade absoluta do sistema,
invocando o rei de Inglaterra, Harvard e tudo o que era fonte de autoridade no
universo da Commonwealth.
O que é surpreendente em
toda esta sequência? Ila estar desejosa – julgava ela – de recuperar o marido, ter
detectado o engano do transportador e só o repor quando quis chegar a outra
conquista. Porque deixara canalizar os trunfos mais persuasivos para uma
aventura onde nem o rosto do interlocutor conhecia?
Outro pormenor curioso:
tenta uma reaproximação ao marido, mas no timing
e nos moldes recomendados pelo correspondente-fantasma. Claro que dá em
nada e, cumprida a tentativa, abandona aquela receita clássica. Afinal, não era
só o novo affair do marido que
inquinava a intimidade do casal. Diferentemente do que Ila pudesse pensar, não era
só ele a dar por perdida a relação… No fundo as escolhas do subconsciente dela – desde
que começamos a partilhar a sua história – inspiravam um rumo oposto ao dos
propósitos tradicionais, que a lançaram na cozinha. Rapidamente, provaram
estar longe de a preencher e empenhar por inteiro. Até ao âmago da sua alma e
da sua mente. Nada mais incontornável que a realidade.
Não há dúvida de que as
nossas convicções também sugestionam a forma de olhar em redor. Por isso, tudo
o que lhe acontece passa a ser lido e interiorizado segundo a nova vontade que emerge,
timidamente, dentro de si: o acesso a um novo interlocutor, provocado por um engano,
parece providencial. O diálogo secreto e divertido através da lancheira
devolve-lhe o gosto pela vida. A relação desencantada da mãe com o pai confirma
o que não quer para si. A vida sacrificada da tia, devotada a um marido
incapacitado numa cama, também lhe revela uma faceta do casamento que a
desentusiasma por completo. A tragédia de uma mulher que se atira de uma torre
abaixo, abraçada a uma filha pequenina, adverte-a para o risco de desesperar. A
vontade de mudar de vida, tocada pelo aceno de Fernandes que se propõe fugir com
ela para o Botão, segundo escreve num bilhetinho, torna-se irreprimível.
É igualmente significativo
que tenha desvalorizado os vários sinais que poderiam indiciar o caminho
oposto, enquanto incentivos para se bater pelo pai da sua filha, continuar próxima
da mãe que enviuvara e da tia vizinha e conselheira, não embarcar para um país
novo sem meios de subsistência mínimos. Nem a recusa de Fernandes em dar-se a
conhecer no encontro que ela combinara, num restaurante, a fazem desistir da
nova amizade. Ele explicara-lhe que não considerava justo aproximar-se de uma
mulher tão mais nova. Na expressão dele: seria
como oferecer um bilhete de lotaria já usado. Percebemos depois, que o
encontro casual com um desconhecido, bem mais velho, o faz repensar sobre a sua
idade e o futuro que ainda pode ter pela frente.
No filme e na vida, as pequenas
decisões de uns e de outros continuam a suceder-se em catadupa, evidenciando
toda uma actividade interior bem mais agitada e decisiva do que o quotidiano,
cheio de pó e rotinas.
A densidade psicológica
das personagens de A LANCHEIRA tornam-no num colosso de perfis humanos,
subtilmente desenhados ao modo indiano. No conjunto, sobressai a tia que, da
janela do andar de cima, vai dando instruções sábias à sobrinha. Apenas lhe
conhecemos a voz, firme e festiva, sem hesitações. Nada escapa àquela presença
fortíssima e sem rosto, que vem de cima, personificando a autoridade da experiência
acumulada e colorida por um sentido de humor acutilante. Autêntica personal trainer ou a M do 007, ideal para
resolver problemas, sobretudo missões difíceis como reacender relacionamentos
esfriados.
Outra personagem antológica,
com um papel vital na evolução dos acontecimentos, sobretudo nos processos de auto-conhecimento
e reviravolta na vida dos dois correspondentes via lancheira, é o novo
substituto de Fernandes no trabalho – o sobrevivente Shaikh, que sabe (e ensina
a) extrair o melhor de todas as circunstâncias do dia-a-dia, virando-as a seu
favor: boas e adversas. Um alquimista, à sua maneira, investindo toda a sua
energia na difícil gestão de tudo o que o dia a dia traz. Literalmente tudo,
com enorme bravura. Aliás, audácia desmedida. Verdadeiramente um apaixonado
pela vida, desperto e ávido de aproveitar quanto lhe seja dado viver. Mesmo
migalhas. Claro que é um psicólogo nato e lê no ar a pequena transformação que os
papelinhos tapados pela panqueca produzem em Fernandes, aliviando-lhe o
semblante carregado. Sempre triste, céptico, o contabilista recusa tomar passos
inovadores que perturbem a rotina. Apesar de levar uma existência cinzenta, que
só poderia ganhar com alguma mudança. Como coragem era tudo o que não faltava a
Shaikh, será ele o grande mestre para incutir ânimo no viúvo taciturno e
descrente da vida.
Só o tom positivo com que
aborda, diariamente, o viúvo empedernido, tentando persuadi-lo a ensinar-lhe o
novo ofício, era tarefa hercúlea e ingrata. Nada menos do que um lutador
intrépido e necessitado para não desarmar com a má vontade do funcionário à
beira da reforma, furioso por ser substituído por um novato atrevido. Atrevido
e pouco sério. A certa altura interrogamo-nos em qual das vezes mentira: quando
conseguira quebrar o gelo dizendo que era órfão, ou quando citara os conselhos
recentes da mãe? Mas no casamento com a mulher que amava, há tantos anos, e com quem tivera de fugir porque o sogro o recusara liminarmente, percebe-se que é um
homem só, mas nada derrotado! Antes triunfal e confiante na sua capacidade de
suplantar qualquer obstáculo.
Sem virtuosismos, nem
leituras simplistas entre bons e maus, o realizador oferece-nos uma incrível
possibilidade de troca de talentos e complementaridades entre uns e outros, de
saldo positivo para todos. Nada há naquelas vidas que não possa ser
enriquecedor, se se quiser. Exemplos de ganhos maiores: Fernandes inicia Shaikh no
difícil ofício de contabilista, salvando-o do desemprego ao encobrir os erros
grosseiros do principiante. Oferece-lhe também companhia como padrinho, familiar
e a única testemunha no casamento do órfão. Por seu turno, Shaikh devolve a Fernandes
a vontade de reinvestir no presente, animando-o com pequenas aventuras e um
olhar alegre e crente nas minudências do dia-a-dia. São elas que tecem a trama
da vida. Bem merecem ser agarradas com o maior fôlego e confiança possíveis, porque
o futuro depende do que hoje semearmos. Uma sabedoria que vale uma vida.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1)
FICHA TÉCNICA
Título
original:
|
THE LUNCHBOX
|
Título traduzido
em Portugal:
|
A LANCHEIRA
|
Realização:
|
Ritesh Batra
(indiano)
|
Argumento:
|
Ritesh Batra e Rutvik Oza
|
Produzido por:
|
Arun Rangachari, Anurag Kashyap e
Guneet Monga
|
Banda Sonora:
|
Max Ritcher
|
Duração:
|
105 min.
|
Ano:
|
2013
|
Países:
|
Índia,
França e Alemanha
|
Elenco:
|
Nimrat Kaur (Ila)
Irrfan Khan as Saajan Fernandez
Nawazuddin Siddiqui
(Shaikh, o órfão)
Nakul Vaid (Rajiv, o marido)
Lillete Dubey (mãe de Ila)
|
Local das filmagens:
|
Índia – Mumbai
(Bombaim)
|
Sem comentários:
Enviar um comentário