30 maio 2014

Rotinas sempre diferentes *



São 6.50h da manhã. Estão 17ºC e o céu ligeiramente nublado - muito ligeiramente. Dou início a mais uma rotina diária - a de caminhar durante cerca de uma hora no paredão do Estoril. O que dantes era ocasional
(apetece-me, está muito calor, há muita gente, estou cansado, bem preciso, que fim de tarde extraordinário, o iPod não tem bateria...)
tornou-se numa saudável obrigação que passa, também por um acordar com despertador.
Ao fim de meia dúzia de dias apercebo-me que as pessoas com que me cruzo são quase sempre as mesmas:
a senhora que encontro aos Domingos na Igreja e que, aqui, reza um terço em passo de marcha;
jovens novas, altas, saudáveis, que aquecem os artelhos antes de se fazerem à corrida;
um casal a rondar os 80, ambos alquebrados, silenciosos, com as articulações desconjuntadas e descompassadas;
cavalheiros idosos, fortes e obesos, de tronco nu num despudor inestético;
atletas amadores, com músculos trabalhados e camisolas que evidenciam participação na corrida de 1997 contra uma injustiça qualquer;
E outros que vou reconhecendo, porque nos cruzamos à mesma hora, nos mesmos locais, com o mesmo ritmo.
O paredão, como tantos outros locais semelhantes, dava, por si só, um livro imaginativo - o que são aquelas vidas, o que pensam, como amam, como se chamam os filhos, o que fazem quando chegarem a casa, qual a sequência com que se lavam e vestem, onde trabalham, o que os torna infelizes, de que riem perdidamente ou de que choram numa convulsão de fazer pena.
A nossa vida é uma sinusóide (ou um interruptor, como diria um humorista). O segredo não é torná-la "lisa", mas sim perceber quando e porquê surge o movimento descendente, o que fazer com ele e como o atenuar. E acreditar, também, que voltaremos para cima. Talvez um dia me sente àquela hora da manhã, e tente desenhar a curva de cada existência.
Amanhã voltarei ao paredão, pelas 6.50h. Verei as mesmas pessoas, terei a tentação de desejar uns bons-dias porque, no fundo, somos todos colegas da mesma rotina. E imaginarei uma artrose que se agravou no casal idoso, umas olheiras na rapariga que corre com pernas de gazela, uma promessa na senhora que já chega ao 3º Mistério antes de passar pela piscina do Tamariz.
Num pensamento que partilhei hoje, continuarei feliz por saber que as nossas vidas não se regem pelas leis da ciência e da técnica, e que o maior encanto pode estar na forma como procuramos uma concavidade inesperada para uma saliência igualmente inesperada.
Adeus, até ao meu regresso.

JdB 

(* publicado inicialmente no dia 23 de Julho de 2008. O estabelecimento abrira há poucos dias e o Zimbabwe estava já ao virar da esquina. Continuo a paredar amiúde e o texto mantém-se actual)

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