14 outubro 2014

Crónicas de um mestrando tardio (e também Duas Últimas, vá...)

Mostrei as perguntas que postei na 6ªfeira. E mostrei as respostas, que não havia postado. O comentário mais imediato foi: não percebo as perguntas nem as respostas. Aconteceu o mesmo ao anónimo que, num rasgo de franqueza, comentou o post: o quê?! Houve ainda quem, sabedor profundo de fado, me tivesse dito: a algumas perguntas responderia 'pois está certo...' que é sempre uma forma curiosa de reconhecer incapacidade intelectual.

Aparentemente, todo aquele arrazoado interrogativo parece feito por, e para, extra-terrestres. Ou, numa visão mais azeda, por quem gosta de se armar em pensador usando raciocínios de clareza inexistente. Os mais espantados falam numa certa inteligência inacessível, praticada por iniciados - ou por doidos varridos. Nada disso, nada disso. Eu esmagaria os meus colegas se aos poemas de Ezra Pound ou Elliott ou Yeats que dominam eu lhes dissertasse sobre a beleza das eficiências fabris, os tempos produtivos ou operacionais, as técnicas nipónicas de gestão de equipamentos, as siglas que alimentam qualquer jargão. Cada um sabe da sua poda.

A pergunta sobre se há salas específicas para Camões ou para o poeta chofer é importante; a questão da sinceridade no canto de palavras alheias, ou a (in)existência de citação, é pertinente. Explico brevemente. Quando Amália canta Com que voz / chorarei meu triste fado num concerto intimista está a confessar-se? E se cantar o mesmo fado no teatro Sankei, em Tóquio, para uma multidão de japoneses que não percebe o que diz a fadista? Ora, se acharmos que a confessionalidade não independe do receptor, podemos concordar (e não estou a dizer que o devamos fazer) que em Tóquio o soneto não é uma demonstração de escrita confessional, pelo que podemos afirmar que ela papagueia o poema. E ser a Amália a cantar, ou uma esquimó inuít a fazê-lo (expurgando a qualidade) é a mesma coisa. E isso faz diferença...

Repito um exercício interessante, que abre portas de pensamento. Até há alguns anos, a esmagadora maioria das confissões (no sentido religioso do termo) era feita no confessionário, uma peça de mobiliário específica para o efeito. O facto do sacramento ter mudado de nome (para Reconciliação) e a confissão ser hoje praticada num gabinete, num sofá, num passeio por um jardim, muda a sua natureza? 

Deixo-vos com um fado cantado por Gisela João. Numa sala pequena, sem microfone, num ambiente de fado, ou numa sala de espectáculos para dois mil japoneses, a letra significa exactamente o mesmo? A confissão da alegria sofrida mantém-se? À confessionalidade basta o emissor?

JdB  





Voltaste, ainda bem que voltaste
As saudades que eu sentia
não podes avaliar
Voltaste, e à minha vida vazia
Voltou aquela alegria
que só tu lhe podes dar

Voltaste, ainda bem que voltaste
Embora saiba que vou
sofrer o que já sofri
Cansei, cansei de chorar sozinha
Antes mentiras contigo 

do que verdades sem ti

Voltaste, que coisa mais singular,
Eu quase não sei cantar
se tu não estás a meu lado
Voltaste, já não me queixo não grito
És o verso mais bonito
deste meu fado acabado

Voltaste, ainda bem que voltaste
O passado é passado,
para quê lembrar agora
Voltaste, quero lá saber da vida
Quando dormes a meu lado,
a vida dorme lá fora

1 comentário:

ACC disse...

Curiosas as suas descobertas. É interessante acompanhar este seu trabalho. Choferes, poetas e versageiros a concorrerem entre si, para interpretes tão distintos como a Amália e a Vizinha Miquelina que só canta para os amigos.
Quem se confessa? A gisela joão ou o autor dos versos?
A Gisela canta, os versos confessam um amor ingrato.
Pois não sei, mas acho que os japoneses não apreciariam o Villaret a declamar estes mesmos versos.
Claro que isto são suposições de quem olha para as perguntas e suspira de ignorância.

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