28 outubro 2014

Do Natal de cada um de nós (c)

Lake Ontario, Toronto, Outubro de 2014

Houve expressões na minha vida cuja compreensão tardou: mercado da saudade, palete, canal horeca, para relembrar as que mencionei recentemente neste estabelecimento. Poderia também referir dureza de Brinell ou working capital, termos que aprendi quando me fiz estudante de engenharia ou funcionário de uma multinacional. Por analogia de raciocínio, foi preciso crescer e ver (que é diferente de ganhar buço e olhar) para perceber sensações que eu não sabia que existiam, porque o meu mundo era um recinto muito exíguo.

O tema em apreço já estava na minha mente, mas foi despoletado por uma visita ao Eaton Centre de Toronto, o maior centro comercial da cidade canadiana. Na cave, metros e metros de artigos natalícios: fitas, velas, bolas coloridas, luzes, etc. Estamos em Outubro, e o meu nacional-criticismo caiu pela base: afinal, não é só em Portugal que o comércio da época começa por alturas da mudança da hora. E foi então que me lembrei disto.

Durante muito tempo não percebi a tristeza das pessoas por alturas do Natal. Demorei décadas até o realizar (palete veio mais cedo, working capital também) porque o meu mundo era pouco maior do que um berlinde de gente pobre, sem verba para abafadores. Um dia percebi porque é que nos presentes e na luz e nos risos e nos jantares havia noites escuras, feitas de verbos conjugados nas ausências dolorosas. Percebi, mas pouco fiz com o entendimento, porque o coração e a mente nem sempre entregam a ordem de marcha à boca que fala e à mão que se estende ao próximo. 

Contudo, demorou mais tempo ainda a decifrar o mistério das luzes de Natal. Desenganem-se os que acham que o renque de lâmpadas coloridas é um adorno de centro de cidade. A iluminação natalícia é um artefacto humano para alumiar o Natal de cada um de nós, porque o Natal de cada um de nós é diferente do Natal de cada um dos outros. Cada ser humano goza as festas à sua maneira - o impacto díspar do ruído da multidão ou dos sossegos silenciosos, da decisão do jantar ou do bacalhau ou da hora dos presentes. As luzes de Natal são diferentes, porque cada caminho é um caminho, feito de paralelismo, de concorrência, de similitude absoluta. Cada rua é um percurso, nenhuma rua é igual à outra. Sou dono de uma iluminação, como a senhora do correio do Estoril é dona de outra.

Serei metafórico. É importante afirmá-lo para que não haja exclusões (do tipo ah pois, os crentes...) num texto críptico e extemporâneo. Cada um de nós tem a sua iluminação de Natal, mas, no fundo, a única luz que persiste é a do Menino Jesus que, deitado numa mão-cheia de palhas, ilumina tudo. E é essa luz conjunta que nos salva, apesar de todas as pequenas lâmpadas individuais com que chamamos os outros ou encadeamos os outros. Essa luz é a luz do Amor. E nada mais nos alumia.

JdB     

2 comentários:

Anónimo disse...

Sábia conclusão!
Abr
fq

Anónimo disse...

É porém imensa a escuridão, tenebroso o breu, que tanta luz teima em expulsar. O fascínio está na fé de que esses tantos amorosos lampejos sejam bastantes para descobrir a réstea da Via Láctea.

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