31 outubro 2014

Da morte



Penso ter ouvido esta ideia (e não as palavras) da boca do próprio, numa entrevista televisiva fascinante de lucidez e clareza. Aquando do velório de Salazar, Adriano Moreira terá visto uma mosca pousar na boca do finado. E pensou: foi um homem que governou um império com mão de ferro, decidiu da vida de milhões de pessoas, imprimiu uma marca fortíssima na sociedade do seu tempo. E mesmo assim, na altura da morte, uma mosca pousa-lhe na boca, como pousaria a outra pessoa qualquer.

Sábado, ainda em Toronto, recebemos um telefonema: morreu fulano. Este fulano (83 anos) era capitão de mar e guerra na reserva; tinha tido um papel importante na fundação dos fuzileiros, fora preso e maltratado aquando da invasão da Índia, combatera a guerra colonial em África. Apesar de uma vida de risco morreu na EN 125,  atropelado por um idoso que afirma ter ficado encadeado pelo sol. Atravessara a estrada para ir comprar laranjas.

Qual a relação entre os dois parágrafos anteriores? Não sei bem, ao certo. Uma certa ironia, ou talvez o lugar-comum que podemos alcandorar a um pensamento mais elevado, de achar que por alturas da morte somos todos iguais, independentemente do que fizemos (segundo critérios mais humanos). Talvez seja uma forma de nos apresentarmos por igual a Deus, despidos do discernimento terreno com que diferenciamos heróis, ditadores, gente de vidas arriscadas ou de existências pacatas, administradores de multinacionais ou caixas do feira nova. Quando nos entregamos ao Criador vamos numa espécie de nudez total, com uma mosca a zumbir-nos na boca seca ou encostados a uma valeta com um saco de laranjas desmanchadas, com uns sapatos novos ou um vestido esgarçado, com um terço enroscado nos dedos ou na pobreza de um caixão barato.

Talvez a  mosca e o atropelamento sejam metáforas para este despojamento com que chegamos ao Céu. Somos todos matéria inerte infinitamente igual, sem um passado que possamos arvorar por vaidade ou defesa. É então que Deus, esquecido das medalhas, das honras de Estado, das capelas mortuárias vazias, dos funerais desertos de gente chorosa, dá início a uma espécie de juízo final que se repete a todo o momento. E acolhe todos, porque não é senão Amor.

JdB   

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