11 abril 2019

Textos dos dias que correm

Ter tempo

O bem mais precioso é o tempo. E tenhamos a certeza: aquilo de que os nossos semelhantes mais precisam é que lhes demos tempo. Quer se trate dos desconhecidos com quem apenas nos cruzámos, ou daqueles que partilham a vida connosco.

E o que é o tempo? É disponibilidade para uma escuta em profundidade. É disposição para um encontro verdadeiro, que não seja um mero esbarrar-se no outro. É espaço para ver, para sentir, para ter compaixão, para fazer um pedaço de caminho em conjunto.

Sensibilizou-me muito uma história que uma amiga, professora de liceu, me contou. Deu-se conta, um dia, de que uma das suas estudantes tinha alguma coisa no nariz que brilhava, e aproximou-se: era um “piercing”.

Falaram disso: queria compreender as motivações da adolescente; escolheu a ocasião e falou também da nossa cultura e daquela grande descoberta que é o nosso corpo.

A jovem dialogou com muita naturalidade e interesse. No fim, contudo, confiou à professora: «Tenho este “piercing” há quase seis meses, e os meus pais ainda não o notaram».

Quando oferecemos tempo, à nossa mesa vem sentar-se o mundo inteiro. A realidade torna-se menos opaca e incompreensível. Conseguimos interpretá-la melhor, e até a colhê-la numa transparência que antes nos era desconhecida.

A realidade não é uma coisa genérica, nem tem lugar num olhar rápido. A vida está cheia de detalhes que não se revelam a quem não seja sensível ao tempo.


D. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 10.04.2019

2 comentários:

ACC disse...

Este texto faz-me pensar que para além da apologia à "escuta activa" devemos promover o "olho vivo" ou quem sabe o "olhar atento".
Porque quando se põe um brinco no nariz, quando se faz um corte ou se muda a cor de cabelo, para além do alimento interior, o que procuramos é existir, saber que somos presentes à vista, que temos um corpo e um espaço. Os adolescentes querem uma identidade, procuram-na por tentativa erro e constroem-na com o reflexo, com a imagem que vem no espelho dos olhos dos outros.

Anónimo disse...

O que ACC escreveu é muito bom, digno e verdadeiro.

Em todas as religiões faz falta as pessoas com ternura. Tanta que a transbordam.
Com tanta ternura, algumas até acabam poetas.

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