29 abril 2019

Das queixas

Há queixas e queixas; ou como me diz alguém próximo, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. O meu devaneio de domingo calorento de meio da tarde não é tanto discorrer sobre as queixas, mas sobre a forma como ouvimos as queixas. Afinal, tenho idade suficiente para ter-me queixado de muito e para ter ouvido muitas queixas. 

Talvez o primeiro ponto do devaneio seja linguístico: sabemos, com exactidão, o que é uma queixa e o que é uma lamentação? Ouvimos sempre o que o outro quer dizer e da forma em que ele quer exprimi-lo? E quando o outro se lamenta percebemos que é um lamento ou, por vezes, entendemos que é uma queixa, e vice-versa? Tal como dizia acima tenho a minha dose de escuta. Em muitos casos achei que determinadas pessoas se estavam a lamentar de algo; talvez quando chegassem ao emprego, ou a casa, quem os ouvisse se irritasse por sentir que ouviam uma queixa - normalmente mais uma queixa. Que tom de voz usamos para nos queixarmos? E para nos lamentarmos?

(A propósito de tom de voz, lembro-me sempre da história da avó de uma grande amiga. Numa altura - talvez há 50 anos - em que havia mais gente a pedir na rua, e quase sempre com uma voz lamurienta, esta senhora dizia: pede o que quiseres, mas sobretudo não faças voz de pobre. Penso que também usava a frase para os netos, quando lhe pediam alguma coisa).

Estou em crer que todos nós nos queixamos, todos nós nos lamentamos. Umas vezes com razão, outras vezes sem ela. Penso que este raciocínio faria inveja a La Palice. Tenho ouvido queixas 

(ou serão lamentações? O que quer que seja, não me são dirigidas, são apenas partilhadas comigo) 

que me parecem ser da mais elementar justiça. Quando estas pessoas as verbalizarem a quem de direito, serão mal recebidas. Porque é o tom de voz, porque é o dramatismo, porque é a lamúria, porque é a agressividade, porque é sempre o mesmo. 

Mais do que sermos a Marie Kondo da escuta, deveríamos ser uma espécie de cirurgiões da escuta: escutar o corpo, dissecá-lo, reagir em conformidade. Oiço pessoas a queixarem-se disto, mas a irritarem-se que outros se lhes queixem disto. Por vezes as pessoas não se queixam disto, mas usam disto para se lamentarem da falta daquilo. Por vezes são pessoas que têm uma enorme necessidade de serem amadas, ou de terem atenção, ou de se encaixarem num ambiente que lhes é adverso. Por vezes, e vejo tanto isso, temos tendência a desvalorizar, ou mesmo não ter paciência, para as fragilidades dos outros que nós próprios não temos. Muito provavelmente também nos queixamos de coisas que aos outros não apoquentam. 

Como tudo na vida, uma dose certa de lamentação (ou de queixa) não faz mal a ninguém. Afinal, se não verbalizarmos aquilo que nos faz falta, mesmo que seja por vezes exageradamente, não damos a entender o que nos faz falta. E aquilo que não verbalizarmos transforma-se em buraco negro. 

Em mim, que sou ser humano da mais absoluta normalidade, coexistem todas as formas de queixa: as justas, as injustas, as que são lamentações, as que são proferidas com voz de pobre ou as que são gritadas. Gostava de ser diferente? Sim, gostava, mas também é esta fragilidade, esta existência defeituosa, que faz de mim ser humano normal, falível, a caminho de qualquer coisa. Desconfio de heróis, de pessoas que nunca se queixam porque são fortes, de pessoas que não fazem voz de pobre de vez em quando. E desconfio das pessoas que exibem uma desatenção muito grande por um certo tipo de queixas, arrogando-se uma impiedade de igual dimensão, muitas vezes porque não têm paciência, simplesmente. No fundo, por vezes desconfio de mim...

JdB

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