«Ó subalimentados do sonho! A poesia é para comer» – assim terminava o poema composto por Natália Correia para se defender em tribunal. Intitulava-se «Em Defesa do Poeta» e fora concebido para a fase final do julgamento, corria o ano de 1972. Acabou silenciado pelo seu experiente e hábil advogado, Palma Carlos, que a proibiu de o declamar ao juiz, para evitar expor o lado insubmisso da açoriana, que só poderia agravar-lhe a pena. Mesmo assim, não se escapou de multa pesada, a par do editor da antologia de poemas considerados atentatórios da moral pública. Indomável e sempre fiel à sua pose teatral, rematada com uma longa boquilha, Natália não se intimidou com o processo, que apenas redundou em mais um momento de cumplicidade e galhardia da ala de oposição intelectual, onde compareceram os seus amigos poetas e inúmeros jornalistas. Hoje, separa-se tranquilamente o trigo do joio e gostos pessoais, ao revisitar as suas múltiplas interpelações. Na altura, o estilo abrasivo e excessivo, qual diva enraivecida, obnubilava tiradas lúcidas e premonitórias sobre a história e o futuro do país, o papel da mulher (curiosamente, nada feminista), as relações que nos esperavam com as antigas colónias, os riscos da Europa para Portugal, etc.
Sobre esse alimento mais interior, discorria: «O poema é o que no homem / para lá do homem se atreve. (…) Pura intenção / de cantar o que não conhece.» (in ‘O Poema’, 1955). Noutros contributos gravou:
«Ninguém se pode possuir inteiramente, porque se ignora, porque somos um mistério. Para nós mesmos. Podemos sim, ser mais conscientes de uma determinada missão que temos no mundo.»
- entrevista dada em 1983
«O grande desastre que aconteceu foi a maneira como ocorreu a descolonização. Ao expulsarem os portugueses, os africanos cometeram o mesmo erro, trágico erro, que os Portugueses quando expulsaram os judeus. O nosso País ainda não se recompôs disso. Angola e Moçambique vão, porém, emendar a mão, recebendo-os de novo, o que irá intensificar-se a partir do século XXI, quando a Comunidade Europeia entrar em derrapagem, até porque nessa altura já a paz será efectiva naqueles jovens países. Por outro lado, serão eles a salvar-nos economicamente, sobretudo Angola, um dos territórios mais ricos do mundo. Tem tudo, até água.»
- in 'O Botequim da Liberdade', de Fernando Dacosta.
«Evidentemente que os partidos são um defeito necessário (…). Agora, o erro das pessoas é adorná-los com méritos extraordinários, porque isso faz-nos cair numa partidolatria, imprópria de espíritos livres!»
«Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta... De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento.»
«E não seremos nós todos portugueses exilados? Mesmo na Pátria. Sobretudo na Pátria, que por isso mesmo é a Pátria da Saudade»
- in 'Descobri que era Europeia', de Natália Correia.
Nos antípodas de Natália, pela forma de estar e pela densidade filosófica, outro poeta – incompreendido em vida – tinha já reconhecido palavras que alimentam: Charles Péguy (1873-Set.1914). Considerou-as paradigma de certa vida:
«Jesus Cristo, minha filha, não nos deu, isso é que não, conservas de
palavras a guardar,
Mas deu-nos palavras vivas para alimentar.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
As palavras de vida, as palavras vivas não podem se conservadas
senão vivas, alimentadas vivas.»
Alimentadas, usadas, aquecidas, quentes, num coração vivo.»
(in PÓRTICO DO MISTÉRIO DA SEGUNDA VIRTUDE)
Depois de longos anos de agnosticismo e militância socialista, Péguy converteu-se e apanhou-se em ‘terra de ninguém’, ostracizado pelos amigos antigos e olhado com estranheza pelos crentes de sempre, incluindo a elite intelectual católica. Restava ele, o bizarro ostracizado pela maioria, que via a realidade com uma agudeza nova e a expunha com escrita afiada, sem complacências:
«Só tendes isto para dizer, a negação de Pedro. (…) (D)izemos isto para mascarar (…). Pedro negou-se três vezes.
E então?
Nós negámo-lo centenas e milhares de vezes pelo pecado, pelas
desorientações do pecado, nas negações do pecado»
(in MISTERIO DA CARIDADE DE JOANA D’ARC)
«Oferecimento
Se necessitas de virgens, Senhor,
se necessitas de valentes sob o teu estandarte
aí estão Clara, Teresa, Domingos, Francisco, Inácio…,
aí estão Lourenço, Cecília…
Mas se, por acaso, alguma vez precisares de um preguiçoso
e de um medíocre, de um ou outro ignorante, de um orgulhoso,
de um cobarde, de um ingrato e de um impuro,
de um homem cujo coração esteve fechado e cujo rosto foi duro…,
aqui estou
Quando te faltarem os outros, a mim sempre me terás.»
O francês conheceu o desespero e resistir-lhe terá sido das maiores provas de vida, ceifada prematuramente no início da Primeira Guerra Mundial. Angustiado até à médula, resulta especialmente significativo ter redescoberto o valor da esperança, destacando-a como a virtude mais nova, entalada e submergida pelas poderosas fé e caridade. Exaltava uma esperança que não se iludia com utopias idílicas urdidas pela mente humana (positivista), nem entrava na recusa violenta (marxista) do presente. Antes partia de e confiava na realidade prosaica de cada dia, ciente das fragilidades do ser humano, mas também da possibilidade de este se superar ao emancipar-se de um horizonte reduzido à sua escala anichada no curto conforto do imediatismo:
«O que me espanta, diz Deus, é a esperança./ E disso não me canso./ Essa pequena esperança que parece não ser nada./ Essa esperança menina./ Imortal.
A Fé é uma Esposa fiel./ A Caridade é uma Mãe./ Uma mãe ardente, toda coração./ Ou uma irmã mais velha que é como uma mãe./ Mas a Esperança é uma menina que parece não ser nada./ (…)
O povo cristão só vê as duas grandes irmãs./ Só olha para as duas irmãs grandes./ A da direita e a da esquerda./ E quase não repara na que caminha no meio.»
«É ela, essa menina, que arrasta tudo consigo./ Porque a Fé só vê aquilo que é./ Mas ela, ela vê aquilo que será./ A Caridade só ama aquilo que é./ Mas ela, ela ama aquilo que será.
A Fé vê o que é./ No Tempo e na Eternidade./ A Esperança vê o que será./ No tempo e na eternidade./
Ou seja: o futuro da própria eternidade.»
Continuando em Paris: uma nota telegráfica sobre Notre-Dame, mais rápida de recordar em imagens. Curiosamente, minutos antes das chamas deflagrarem, sobressaíram palavras entoadas musicalmente para um hino à Senhora da Catedral – STABAT MATER [letra na curta-metragem, com tradução em inglês e transcrita no final(1)],
Após a voragem do fogo, os primeiros registos captados pelos bombeiros apontaram aos ‘sobreviventes’, que pareciam pairar naquela escuridão trágica de fuligem e ruínas: a imagem de Nossa Senhora junto ao altar-mor, a imagem de Santa Teresinha e uma cruz com os braços bem delineados pela luz, como a confirmar a inscrição latina gravada na base – tudo muda, só a cruz permanece:
Voltando a Lisboa: mimada no seu Botequim onde ocupava todo o espaço, e curtindo a liberdade que Sá Carneiro proporcionava ao seu grupo parlamentar, Natália animava tertúlias e conspirações locais entre o Parlamento e as noitadas político-sociais do largo da Graça. Paralelamente, entregava-se a uma escrita incisiva, que clamava alto o que muitos nem ousavam pensar. Nunca lhe faltou coragem, o que nos anos da censura, sobrou em dores de cabeça para o seu advogado, com enorme dificuldade em contê-la. Guerreira nata, dedicou à paz versos de bravura e combate:
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
O apelo penetrante à paz também se aplica ao Domingo da ressurreição, quando a Vida toma a iniciativa de abrir as portas do Tempo, desafiando-nos à eternidade. Boa Páscoa a todos,
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Letra do hino mariano Stabat Mater, em latim e inglês:
1. Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius
The grieving Mother stood weeping beside the cross where her Son was hanging
2. Cuius animam gementem contristatam et dolentem pertransivit gladius
Through her weeping soul, compassionate and grieving, a sword passed.
3. O quam tristis et afflicta fuit illa benedicta Mater Unigeniti
O how sad and afflicted was that blessed Mother of the Only-begotten!
4. Quae moerebat et dolebat et tremebat cum videbat nati poenas incliti
Who mourned and grieved and trembled looking at the torment of her glorious Child
5. Quis est homo qui non fleret Matri Christi si videret in tanto supplicio?
Who is the person who would not weep seeing the Mother of Christ in such agony?
6. Quis non posset contristari Matrem Christi contemplari dolentum cum filio?
Who would not be able to feel compassion on beholding Christ’s Mother suffering with her Son?
7. Pro peccatis suae gentis vidit Iesum in tormentis et flagellis subditum
For the sins of his people she saw Jesus in torment and subjected to the scourge.
8. Vidit suum dulcem natum moriendo desolatum dum emisit spiritum
She saw her sweet offspring dying, forsaken, while He gave up his spirit
9. Eia Mater, fons amoris, me sentire vim doloris fac ut tecum lugeam
O Mother, fountain of love, make me feel the power of sorrow, that I may grieve with you
10. Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam
Grant that my heart may burn in the love of Christ my Lord, that I may greatly please Him
11. Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas cordi meo valide
Holy Mother, grant that the wounds of the Crucified drive deep into my heart.
12. Tui nati vulnerati tam dignati pro me pati poenas mecum divide
That of your wounded Son, who so deigned to suffer for me, I may share the pain
13. Fac me vere tecum flere crucifixo condolere donec ego vixero
Let me sincerely weep with you, bemoan the Crucified, for as long as I live
14. Iuxta crucem tecum stare et me tibi sociare in planctu desidero
To stand beside the cross with you, and gladly share the weeping, this I desire
15. Virgo virginum praeclara mihi iam non sis amara fac me tecum plangere
Chosen Virgin of virgins, be not bitter with me, let me weep with thee
16. Fac ut portem Christi mortem passionis fac consortem et plagas recolere
Grant that I may bear the death of Christ, share his Passion, and commemorate His wounds
17. Fac me plagis vulnerari fac me cruce inebriari et cruore filii
Let me be wounded with his wounds, let me be inebriated by the cross and your Son’s blood
18. Flammis ne urar succensus, per te, Virgo, sim defensus in die iudicii
Lest I burn, set afire by flames, Virgin, may I be defended by you, on the day of judgement
19. Christe cum sit hinc exire da per matrem me venire ad palmam vicoriae
Christ, when it is time to pass away, grant that through your Mother I may come to the palm of victory
20. Quando corpus morietur fac ut animae donetur paradisi gloria. Amen
When my body dies, grant that to my soul is given the glory of paradise. Amen
3 comentários:
Que eu saiba, houve dois Palma Carlos licenciados em Direito. Dois dos quatro filhos de uma Senhora Professora Primária em Sacavém. A qual deles se refere? Espero que se refira ao Manuel João da Palma Carlos.
Pena foi que a letra de Stabat Mater tenha sido prantada de tal maneira que só com lupa.
saudações
Caro Anónimo,
O editor e dono do estabelecimento tem muito gosto em oferecer-lhe a lupa que pediu. Vai sob a forma de letra maior - espero que já esteja a contento.
O Anónimo agradece a letra maior.
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