10 abril 2019

Vai um gin do Peter’s ?

CLÍMAX MUSICAL - A «PAIXÃO» DE BACH NO CCB, 16-17 de Abril de 2019

Existirá o genoma musical? Famílias como os Bach, os Mozart ou os Scarlatti sugerem que sim e num patamar de genialidade, de tempos a tempos. Os Bach somam o recorde de longevidade, com músicos notáveis desde o século XVI a XIX. Nesse clã de alemães virtuosos e talentosos sobressaiu Johann Sebastian Bach (1685-1750), pai de 20 filhos, todos legítimos, dos quais 3 foram também instrumentistas e compositores conceituados. 

Esta tela de E.G. Haussmann (1748) com retrato de Bach, aos 63 anos, tem uma história com outro músico e final feliz:
o maestro britânico Sir John Eliot Gardiner conseguiu convencer o americano proprietário do quadro, Bill Scheide,
a devolvê-lo à cidade de J.S.Bach – Leipzig. 

No repertório de J.S.Bach sobressai a «Paixão segundo S.Mateus», estreada na oração da noite de Sexta-feira Santa de 1727. Coincidia também com o primeiro momento musical que quebrava o longo e penoso silêncio observado pelos protestantes durante toda a Quaresma e o Advento, numa abstinência exigente para populações onde o gosto e a prática musicais imperavam. Ora a música retomada no dia da morte de Cristo visava dar relevo à memória da Paixão e maior densidade à oração dos fiéis, cumprindo à letra a máxima de que ‘cantar é rezar duas vezes’.  

Bach esmerou-se na obra, que reviu ao pormenor, estreando uma versão mais apurada nove anos depois. Até pela duração da peça (2h40) pode perceber-se que se trataria de uma vigília noite adentro. A cidade de Leipzig pôde acompanhar o crescimento da obra e beneficiar de uma cerimónia sustentada num colosso musical, que juntava excelência artística a uma riqueza espiritual difícil de igualar. O requinte chegou a detalhes ínfimos. Por exemplo, as árias que dão voz às frases dos Salmos têm o número exacto de notas que corresponde ao número do Salmo evocado. Outro exemplo: as palavras de Cristo distinguem-se das das outras personagens pelo acompanhamento orquestral com as cordas, num registo mais etéreo e diáfano, que remete para uma origem de outra natureza, de outro Reino.  

A «Paixão» de JSB adopta o livreto de Picander, que intercala versículos do Evangelho de S.Mateus com reflexões sobre o texto sagrado. Deste modo, impregnou a música de uma dimensão religiosa, funcionando em ex-aequo com a componente artística. Conforme explica o programa de sala do concerto Gulbenkian da Semana Santa de 2018 (a seguir transcrito), Bach fez ecoar na arte musical o frémito mais profundo da alma – aquela sede de amor sem limites, que se pode abrir ao diálogo com o Amor maior, revelado na dádiva infinita e incondicional que a Semana Santa reacorda.    

Os momentos mais sublimes da peça de Bach vêm assinalados no programa Gulbenkian, feito à medida de quem queira e possa aproveitar os concertos no CCB(1), a 16 ou 17 de abril (https://www.ccb.pt/Default/pt/Programacao/Musica?a=1435): 


Bach - Paixão segundo São Mateus, BWV 244

«Durante séculos vigorou no seio da Igreja Luterana a norma do ‘tempus clausum’, a proibição de música instrumental durante o Advento e a Quaresma. Esta prescrição era seguida pela cidade de Leipzig, abrindo-se, contudo, uma exceção: a narrativa da Paixão de Cristo, durante o Serviço de Vésperas de Sexta-Feira Santa. Foi para este momento específico do ano litúrgico que Johann Sebastian Bach, na qualidade de Kantor da igreja de São Tomé de Leipzig, escreveu a Passio Domini nostri J.C. secundum Evangelistam Matthaeum [Paixão de Nosso Senhor J(esus) C(risto) segundo o Evangelista Mateus]. Bach devotou particular cuidado na sua composição e maior cuidado, ainda, na elaboração de um manuscrito definitivo, correspondente às sucessivas alterações que foi introduzindo, desde a sua primeira audição, a 11 de abril de 1727, até à versão final, hoje em concerto, estreada a 30 de março de 1736.

Na senda do que fizera na Paixão segundo São João (1724), Bach seguiu o cânone para este tipo de narrativas; o texto do evangelista é intercalado por comentários e reflexões poéticas, que assumem a forma de recitativos, árias e corais, traço particular da tradição musical luterana, com raízes na oratória italiana e na sua congénere germânica, as ‘historiae’. 

Mas esta narrativa enquadrada vai muito para além da prática corrente, os ‘sermões em música’, como são genericamente conhecidos. Valendo-se de um extraordinário libreto escrito por Picander, pseudónimo de Christian Friedrich Henrici (1700-1764), que por sua vez se baseou nos sermões do teólogo Heinrich Müller (1631-1675), Bach construiu uma obra musical impressionante, quer pela sua duração, quer pela estrutura complexa e heterogénea, rica em detalhes musicais e expressivos.

Desde logo, a Paixão segundo São Mateus tem uma tripla dimensão litúrgico-dramática. A narrativa das últimas horas de Cristo, seguindo os capítulos 26 e 27 do Evangelho de São Mateus, corre, paralela, à resposta do crente perante este drama, os comentários de Picander, sempre na primeira pessoa (culpa “Buss und Reu”, revolta “Sind Blitze”, compaixão por Jesus “Können Tränen”, o desejo de o salvar “Komm, süsses Kreuz”). Verdadeiro ato de contrição, “Erbarme dich”, com o seu pungente solo de violino, a inquietante “Aus Libe will” ou a esperançosa “Mache dich” são um convite direto a cada um dos ouvintes para se envolverem no drama, para lidarem, a um nível introspetivo, com as palavras cantadas. A terceira dimensão é a comunitária. Os corais surgem ao longo da Paixão como resposta da assembleia aos eventos narrados e, musicalmente, como pontos unificadores de toda a obra.

Os corais “Herzliebster Jesu” e “O Haupt voll Blut” desempenham um papel fundamental neste contexto. O primeiro é ouvido três vezes e está associado à inocência de Jesus e à sua morte como condição essencial para a salvação das almas. O segundo é ouvido cinco vezes, numa gradação harmónica dramática que termina com a invocação de Cristo na hora da morte de cada um de nós. 

Ainda neste contexto, os coros “Kommt, ihr Töchter” e “O Mensch, bewein”, na abertura e conclusão da Parte I, e o derradeiro “Wir setzen uns”, no final da Parte II, assumem-se como três lamentos universais que englobam as três dimensões desta Paixão, a bíblica, a pessoal e a comunitária.  O discurso musical do Evangelista é declamado, salvo momentos de maior tensão dramática, como o arrependimento de Pedro, “Und ging heraus”, em que ganha uma dimensão rítmica e harmónica de grande expressividade emocional. O mesmo se aplica aos soliloquentes, os apóstolos Judas e Pedro, o Sumo-Sacerdote Caifás, as duas testemunhas chamadas ao Sinédrio para prestar falsas declarações, os Sumo-Sacerdotes do Templo, duas criadas de Caifás que acusam Pedro, o governador Pilatos e sua mulher.

Coro final «Wir setzen uns mit Tränen nieder»:  



O extremo cuidado de Bach com as palavras de Cristo é apenas percetível numa leitura atenta da partitura. Ainda que musicalmente próximas das do Evangelista, são acompanhadas pela secção de cordas da orquestra I, um halo musical que diferencia as intervenções de Cristo dos restantes personagens. 

O sentido apurado de dramaticidade de Bach revela-se no momento em que profere as suas últimas palavras “Eli, Eli”. O momento derradeiro de Jesus, abandonado por Deus, surge também abandonado pelo halo musical. É extraordinário constatar que esta passagem tem 22 notas, alusão ao salmo 22 “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”, assim como o momento simbólico da instituição da Eucaristia na Última Ceia, os ariosos “Nehmet, esset” e “Trinket alle daraus” têm, respetivamente, 34 e 116 notas na linha do contínuo, referência direta aos salmos 34 “Provai e vede” e 116 “Receberei o Cálice”. 

Ária de Jesus, «Eli, Eli» 



O coro assume diversas formas e papéis. Na narrativa de São Mateus, incorpora os discípulos, no inquisitivo “Herr, bin ichs”, da multidão irada “Lass ihn kreuzigen”, repetido um tom acima para ilustrar as palavras do Evangelista “Mas eles gritaram mais”, ou os presentes no Calvário reconhecendo a verdadeira dimensão de Cristo, no indiscritível “Wahrlich”. 

Coro da ária «Wahrlich, dieser ist Gottes Sohn gewesen» 
(«Verdadeiramente, este era o Filho de Deus») em 3 versões
sequenciais míticas:  00:00 Harnoncourt,  00:18 Karajan e  00:46 Richter:  


A orquestra desempenha um papel pictórico notável, muito para além do enquadramento harmónico do que é cantado. Seguindo a tradição barroca das metáforas musicais, Bach recorre à orquestra para ilustrar a dor de um coração angustiado “O Schmerz!”, o fogo do Inferno “Eröffne den feurigen”, a flagelação de Cristo “Erbarm es Gott”, ou o tremor de terra que se seguiu à morte de Cristo “Und siehe da”.

Despida da sua função litúrgica, é hoje difícil compreender a real dimensão desta Paixão. Já não surge inserida num longuíssimo serviço religioso, dividida em duas partes, de entremeio com o Sermão, antecedida e precedida por prelúdios de órgão e corais, entoados pelos fiéis presentes, até ao facto de os músicos envolvidos não estarem no campo visual da comunidade em oração, separados em duas galerias opostas, acentuando, ainda mais, a textura antifonal. Contudo, a Paixão segundo São Mateus mantém o seu incomparável alcance poético-musical intacto, e a sua estranha habilidade para, ainda no presente, agitar a alma.»

José Bruto da Costa 
Programa Gulbenkian – 26-28.Março.2018


Exímio em tudo o que respeitava à música, J.S.B. também é glosado e elogiado pelos seus dotes pedagógicos, elencados no artigo «How Johann Sebastian Bach Taught His Students: 4 simple methods every parent and teacher should know»

Quem diria que o melhor do Barroco seria ressuscitado por um romântico, também germânico – Mendelssohn Bartholdy, que resgatou do esquecimento a poderosa «Paixão» de Bach? 

Quem diria que, hoje, se revive em salas de concerto a versão musical do clamor mais intenso e fecundo do coração humano, sedento de um Amor vivo e repleto de eternidade?  

Que melhor presente, em vésperas de Páscoa, se não esta «Paixão» musical(2), sem fazer estragos nos sítios errados, como os doces híper calóricos da quadra? Aquela Sexta-feira Santa de 1727, que mudou a música, continua apostada em mudar-nos por dentro, para melhor. Se deixarmos. Se tivermos ouvidos. 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
___________________________
(1)  Ópera e oratória no CCB, com actuação do Coro e Orquestra Gulbenkian. Sinopse no site do CCB: «Ao encenar A Paixão segundo S.Mateus, de Bach, Romeu Castellucci recusa qualquer tentativa de ilustrar, procurando antes um novo sentido para a revelação. Um certo número de situações permite, em última instância, encontrar uma opção quando confrontado com as palavras da Bíblia e da essência profunda da composição de Bach. Uma série de elementos surgem, um após outro, como puros objetos de contemplação, sem qualquer expediente técnico. São-nos apresentados como «pedras», capazes de condensar uma atitude de escuta profunda. Cada um pode decidir entregar-se à escuta, não olhar diretamente, deixar-se perder ou, talvez ainda, predispor-se a sentir o sofrimento humano.» 

(2)    Versão integral da «Paixão», pelo lendário maestro Herbert Von Karajan: 

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue