Paris: Pedra sobre pedra
Era para permanecer em silêncio durante esta Semana Santa. Mas, como diz o povo português, o homem põe e Deus dispõe. No mesmo dia em que comprei e li dois excelentes ensaios, um sobre a “esperança contra toda a esperança” e outro sobre a conceção arquitetónica das capelas dos seminários de Braga, quiseram as circunstâncias ou quem as move que a jornada terminasse com desgosto, perante as imagens do incêndio que arrasou todo o interior da catedral de Paris, dedicada a Nossa Senhora. Se para mim a escrita não é um talento nem somente uma via artística de catarse, mas sobretudo um instrumento de dever, não poderia ficar calado perante o que vi, mantendo na gaveta do cérebro as reflexões que me assaltaram em poucas horas.
Em momentos como este, é preciso encontrar a confiança (a fé) que alicerça a espera e a esperança, abdicando das expectativas mundanas, e saber escutar a eloquência do vazio instituído pela destruição. Recordo, perante as imagens da Notre-Dame carbonizada e esventrada, as palavras de Cristo registadas no Evangelho segundo São Lucas:
“E, dizendo alguns a respeito do templo, que estava ornado de formosas pedras e dádivas, disse: ‘Quanto a estas coisas que vedes, dias virão em que não se deixará pedra sobre pedra, que não seja derrubada.’ E perguntaram-lhe, dizendo: ‘Mestre, quando serão, pois, estas coisas? E que sinal haverá quando isto estiver para acontecer?’ Disse então ele: ‘Vede não vos enganem, porque virão muitos em meu nome, dizendo: Sou eu, e o tempo está próximo. Não vades, portanto, após eles. E, quando ouvirdes de guerras e sedições, não vos assusteis. Porque é necessário que isto aconteça primeiro’ […]” (Lc 21, 5 – 9).
Sabemos o que sucedeu depois. Poucas décadas passadas, o Templo de Jerusalém seria arrasado pelos romanos e nunca mais seria reedificado. Escassos (mas imponentes) muros restaram dele. Tudo o mais se transformou num imenso espaço aberto que nenhuma construção posterior viria remediar. Nada disso extinguiu contudo a voz inefável e numinosa oferecida naquele lugar. Transformado em local de lamentação, de oração e de prostração, continuou como santuário sem igual, como local privilegiado, mais aberto (apesar das constantes convulsões que aí se foram e vão gerando), de comunicação com a divindade.
Nada se perde ou cria, tudo se transforma, ensinou-nos Lavoisier. Não tenho dúvidas de que dentro de algum tempo, e nem precisa ser longo, veremos de novo a sé da capital francesa reerguida e devolvida aos crentes, aos não-crentes e, sobretudo, aos turistas. Será isso contudo o mais importante?
É claro que as notícias de igrejas incendiadas e profanadas um pouco por toda a França e por muitos outros países nos inquietam, mesmo que isso não nos leve a agir e a mudar de vida dentro e fora da Igreja (e deveria levar). As mais diabólicas manifestações de subversão da dignidade e da integridade das pessoas e da criação, porque sedutoras e na moda, vão incomodando uns e provocando o assobio (interesseiro ou inconsciente) de outros que tudo questionam menos o caminho por onde andam (se sabem andar verdadeiramente). Vivemos, como anunciou São Paulo numa das suas epístolas, sob a ação do “mistério da iniquidade”. É-nos exigida uma atenção extrema, um discernimento que não dispense nem a razão nem a fé chegada por intermédio da graça, para não resvalarmos pelo abismo. Mesmo assim, correndo os maiores riscos, “vamos cantando e rindo”… E, se o futuro nos preocupa gravemente, preferimos o prazer e o turismo (até espiritual) a procurar entender o que nos rodeia, tirando daí as devidas consequências.
Há todavia razões para ter esperança, mesmo contra a esperança. Dante, na Idade Média, ensinou-nos que é preciso destruir a esperança mundana, eliminando em nós toda a vileza; só assim seremos salvos. O incêndio que destruiu grande parte da Notre-Dame de Paris pode ser lido como uma alegoria do nosso tempo. Não necessariamente uma alegoria negativa. À volta do edifício em chamas foram muitos aqueles que, na via pública, ajoelharam e elevaram as suas preces. Sem medo daqueles que os rodeavam e num país que, explorando o turismo cultural movido pelas expressões mais altas da arte cristã, proíbe muitas manifestações públicas da religiosidade.
A igreja magnífica edificada pela arte gótica e neogótica renascerá. Certamente diferente. O futuro a Deus pertence, mas desejo que a parcial finitude da civilização europeia representada pelas chamas mostre também uma reconstrução dos seres humanos. “É necessário que isto aconteça primeiro”… Não sabemos o que virá depois. “Quando ouvirdes de guerras e sedições, não vos assusteis”… Elas estão por aí, tantas vezes à nossa porta. Que o vazio e as cinzas instituídas neste início de Semana Santa nos ensinem a encontrar o melhor caminho, ainda que seja pedregoso, por entre os escombros.
Ruy Ventura
Publicado pelo SNPC em 17.04.2019
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
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1 comentário:
«... num país que, explorando o turismo cultural movido pelas expressões mais altas da arte cristã, proíbe muitas manifestações públicas da religiosidade.»
O que se podia dissertar, falando e escrevendo, sobre esta frase!
Ruy Ventura 'não faz o meu género' na escrita. Não o conheço. Li o que me foi mostrado — aqui e na SNPC. Creio que fez bem em transcrevê-lo.
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