09 março 2020

Da confiança

Já no fim do filme Uma Questão de Honra há uma diálogo tenso e que de alguma forma determina o desfecho da trama. O advogado diz à testemunha: "I want the truth"; a testemunha responde: "you can't handle the truth." Para efeitos deste raciocínio é indiferente o que é a verdade ou a que verdade se referem os intervenientes. Interessa, isso sim, as duas frases (i) eu quero a verdade, e (ii) você não aguenta a verdade

Nesta versão, a expressão "handle" é traduzida por "aguentar". Ora, de um ponto de vista teórico, sem nos atermos ao enredo do filme, porque é que alguém não conseguiria aguentar a verdade? Talvez porque a verdade fosse muito dura, talvez porque a pessoa que a escuta não estivesse preparada para a verdade, por desconhecer o conceito de verdade.

A expressão verdade poderia aqui substituir-se por uma imensidade de outras dimensões. Conheci uma pessoa (desaparecida há bastante tempo) que poderia ter sido a protagonista do diálogo do filme, ainda que ligeiramente alterado: (i) "eu quero (a) ternura"; (ii) "você não aguenta a ternura." A ternura é dura? Não, a ternura era algo que essa pessoa desconhecia, pelo que não aguentaria viver com algo que lhe era estranha e que, de alguma forma alteraria a sua estrutura. Poderíamos usar a confiança, por exemplo: pessoas que querem sentir confiança mas que não aguentariam viver com ela porque, por um motivo qualquer, a confiança esteve arredada das suas vidas e tiveram de criar mecanismos de defesa para essa lacuna.

A confiança no próximo pode ser uma suspensão da incredulidade, sobretudo para quem não foi habituado a sentir a confiança à sua volta: implica baixar as guardas, ter uma perspectiva diferente, olhar em frente, mais do que olhar para trás para ver de onde vem a faca que apunhala à traição. Exercer a confiança no outro é fechar os olhos e deixar-se cair, alimentando a certeza de que se será amparado na queda. Amar não é mais do que confiar - e isso pode ser "inaguentável" para quem não sabe o que isso é, porque nunca o viveu.

JdB


2 comentários:

Anónimo disse...

Há uns dias, mostrou-se que Adília Lopes andou a matutar neste problema.
E como já foi demonstrado, ideias e escritos comuns têm origens comuns.
ao

ACC disse...

Curioso!
Confiança não é importante só no amor.É indispensável em tudo, no entanto é a desconfiança que pode, também, infernizar o amor. Curioso é que desconfiança não é o oposto de confiança. Pode haver desconfiança e haver confiança. Estranho e curioso. Confiança está, normalmente associada a entrega, a pôr as mãos no lume por alguém. Confiança pode também estar associada à protecção, ao mais básico dos patamares de Maslow-o abrigo, à segurança, à pertença.
Curioso, estranho e ainda mais desafiante é a sua ideia de sentir confiança à nossa volta. Associa a confiança ao levantar as guardas e temer a traição. Estas duas circunstâncias, podem ter essências diferentes. Na primeira, alguém precisa de esconder as suas fraquezas, na segunda, alguém tem medo e precisa de saber que há segurança. Vulnerabilidade e segurança são coisas diferentes e não derivam, necessariamente, da falta de confiança.

Acerca de mim

Arquivo do blogue