Não haverá, seguramente, ninguém vivo que nos explique de viva voz o que foi o impacto da gripe espanhola ou em que é que se compara com o impacto do COVID-19. Em 1918-1919 morreram dezenas de milhares de portugueses. Vamos contar que agora não morra tanta gente, embora a previsão de mortos configure uma tragédia.
Dou por mim a pensar no que vai mudar daqui para a frente. Um pensamento já elaborado por outros, seguramente, e de forma mais profunda ou científica. O que sabemos todos é que nada será igual. Há quem ache que o nosso modo de vida acabou, há quem ache que os laços de família saem reforçados.
Tenho uma amiga espanhola, professora universitária de arquitectura. Esteve estes últimos dias a preparar aulas que serão dadas à distância. E dizia-me ontem que o futuro (ela viaja muito por causa do voluntariado internacional que nos une) pode passar por estas aulas quando ela tem de se ausentar de Espanha. Anteontem, uma pessoa que me é próxima e que faz quarentena com marido e três filhos num andar em Lisboa, dizia-me que tem ido mais ao supermercado - uma actividade motivada não pela necessidade de comprar mantimentos...
Podia pensar na parte mais visível da tragédia: quantos empregos se perderão, quantas economias irão à vida, quantas empresas fecharão? Mas penso também nas oportunidades: quantas pessoas quererão passar a fazer teletrabalho para estar mais tempo em casa, poder ter mais filhos? Quantas pessoas mudaram radicalmente a sua forma de pensar relativamente a este assunto? O que farão as empresas com isto. A este respeito, o último número do TLS (Times Literary Supplement) afirmava: this issue is the first in the TLS’s nearly 120 years of existence to have been edited and sent off to press by a group of people contributing solely from their own homes. Se se consegue fazer um suplemento literário a partir de casa (e há outros exemplos em Portugal) porque é que tanta gente tem de ir para o emprego se preferir ficar em casa? O que se poupa e o que se ganha?
Também penso em coisas mais comezinhas: daqui a quanto tempo poderemos viajar ou dar um encontrão numa carruagem de metro? Quanto tempo demorará a recuperarmos a confiança nos abraços, na proximidade física tão latina, nos ajuntamentos? Como me perguntava alguém próximo, daqui a alguns meses haverá mais divórcios ou mais bebés? Que impacto teve esta pandemia nas relações familiares? Foi maioritariamente benéfica ou muito pelo contrário? O que afectou a proximidade excessiva ou o afastamento excessivo?
Passado o momento da tragédia, o mundo tornar-se-á uma boa fonte de estudo. O que vai mudar, que se perceba já, daqui a alguns meses? Conseguiremos perceber que podemos viver com menos? E quereremos? De facto, nada será como dantes.
JdB
1 comentário:
Belíssima reflexão como sempre. Os seus pensamento,s para além de muito bem estruturados e oportunos, são provocadores, porque soltam-me a pena.
As universidades já andam a fazer inquéritos para estudos. Tive a oportunidade de ver um deles e, curiosamente, tive um pensamento que poderá parecer negativo, tipo técnico da TV cabo, faltavam dimensões para analisar.
Contudo para que essas dimensões ou percepções fossem consideradas, era necessário que os investigadores soubessem muito de história e tivessem um dedinho de bruxa visionário que pudesse antever o que vem por aí.
Muita coisa será diferente. Muita coisa será melhor e muita coisa será pior, mas aquilo que preocupa as pessoas no imediato é a sobrevivência e isso tolda o horizonte, esfuma o que pode ser verdadeiramente libertador e importante para o crescimento da humanidade.
A ver vamos...
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