Na semana passada falei com a minha gestora de conta sobre dinheiros, um tema que, num certo intervalo, varia entre o maçador e o críptico. Note-se que não sou uma espécie de anárquico cheio de desprezo pelo vil metal, nem sou daquelas pessoas muito finas para quem o dinheiro ou se tem ou se não tem - mas do qual não se fala. Gosto de dinheiro, porque é disso que vivo e é isso que me permite satisfazer alguns devaneios. O problema está na terminologia - aplicações, diversificação, mercados, dívida pública, investidor conservador, praças, etc. que me chega aos ouvidos com um esoterismo enfadonho e indecifrável. Volto ao tema da minha gestora de contas...
Dizia-me ela que "por acaso" [é uma expressão muito usada nestes tempos, como se fosse um acidente do destino, não uma (quase) decisão] é uma pessoa muito optimista que acredita na solidariedade da espécie humana. Conhecendo-a como conheço não tenho uma dúvida disso. Mas acho curioso que todos os comentadores ou entrevistados na televisão (agora, quando aparecem via skype, têm sempre uma estante com livros por trás) acham o mesmo: todos eles são optimistas e positivos. No fundo, o que qualquer cristão que queira cumprir os mínimos deve ser. Ao contrário de toda esta gente mais sabedora do que eu, tenho uma confiança moderada na espécie humana, porque parte dela apedreja ambulâncias pejadas com velhos; a outra parte sim, é atenta ao seu próximo; e há ainda o ministro das Finanças holandês.
Ora, estas qualidades, como os prognósticos, devem ser vistas retrospectivamente. Sente-se no ar uma espécie de irmandade face ao infortúnio, como se a humanidade sentisse o impulso de por as carruagens em círculo para protecção colectiva do inimigo. Mas a pandemia chegará ao fim e eu, descrente (ou não tão crente, vá...) nas virtudes da espécie humana, temo rever-me neste texto de Juan Manuel de Prada que me enviaram há tempos:
La plaga del coronavirus, cuyas consecuencias apenas hemos empezado a paladear, nos ofrece una ocasión inmejorable para cambiar nuestra desquiciada forma de vida. Pero, como nos enseña el Apocalipsis, los hombres se distinguen siempre, después de sufrir una calamidad, por volver a las andadas; y esta conducta irracional, tristemente repetida en todos los crepúsculos de la Historia, se repetirá también ahora.
Gostava de não ser assim. Gostava de falar para a televisão via Skype e, com um renque de livros por trás a demonstrarem o meu apreço pela cultura, dizer que sim, que por acaso acredito muito na espécie humana. Mas conseguiremos, individual e colectivamente, uma mudança tão radical nos nossos comportamentos? Ou rapidamente esqueceremos, não a pandemia (porque ninguém com idade bastante a esquecerá jamais) mas o que ela poderia ter feito por cada um de nós - famílias, empregadores, casais, pessoas singulares, que passaram por momentos tormentosos, desafiantes, dolorosos. A humanidade em que por acaso acreditamos, mudará?
***
Numa nota um pouco à margem, escrevo este texto algo pessimista (mas só por acaso é que sou pessimista) no dia em que li a crónica de Alberto Gonçalves no Observador. Dei por mim a pensar que, na essência, não há diferença entre ele e o Vasco Pulido Valente. Este dizia mal de tudo tendo aos ombros a capa da sapiência histórica; aquele diz mal de tudo tendo aos ombros a capa do humor sarcástico. O que há em comum? Dizerem mal de tudo.
JdB
4 comentários:
Creio que isto é de velhos:
Quem diz ou escreve mal de qualquer coisa está alertar-nos para os lados bons dessa mesma coisa. Maledicente ou bendizente são inseparáveis, por mais que pareçam ser um único predicado d'alguém.
ao
Caro ao,
Saberá a minha idade? Será que a "legal" é igual à "mental?
Intuo-lhe um toque de optimismo e confiança na espécie humana. Veria os seus livros, se falássemos por skype (uma pequenina provocação humorística...)
Só sei que sou mais velho que vós, JdB. Sei que a idade mental nunca será a da legal.
Não sou optimista; e pessimista, muito menos. Tenho Esperança.
Pela profissão, cedo aprendi a desconfiar da bondade do 'selvagem'. Não tenho alguma confiança na espécie humana. E porquê?
Porque tive imensos clientes idosos que me ensinaram — por histórias ou pelo exemplo de suas vidas. Eu, instintivamente, senti que a vida se aprendia com o velhos (é um dos esteios seguros para a sobrevida nesta Espécie), que já tinham passado por todos os desaires veiculados por amores e afectos, filhos e Família, amizades e ódios e invejas, e aplicação de poupanças.
"Ter Esperança é esperar, apesar do tempo. Pois é o único modo de derrotar o tempo. É a Esperança que se renova, que permanece, que espera quando já não há ânsias, sonhos, aspirações nem desejos. A que espera quando não há esperança.
A Esperança — que vence o tempo e que vence o mundo — tem de ser tão poderosa que só pode nascer de algo que seja maior do que tudo.
Com a Esperança que vence, temos de esperar o Céu. A Esperança é a luz que a Luz nos deixou até ao seu pleno regresso". (João César das Neves)
Não sou escritor de livros. Escrevo sobre o que sinto, sobre o que vivo. Por vezes com uma ocasional chalaça.
Como A.L. Antunes, «Por que é que havia de me sentir sozinho? Raras vezes na minha vida, desde que me lembro de mim, tive um sentimento de solidão. E não me sinto mal na minha companhia, divertimo-nos muito os dois, eu e eu. Não me aborreço».
Sempre senti que nisto éramos iguais.
Para finalizar, gostaria de passar um tempo consigo, na conversa. Com um Gin Atómico, segundo a gíria que me aplicavam porque trabalhei anos com Isótopos radio-activos,
Abraço
Caro ao (name)
Obrigado pelo seu comentário e pelas repetidas visitas, que revelam, entre outras coisas, um conhecimento muito profundo dos textos do Prof. César das Neves fora do terreno árido da Economia.
Bebamos então um Gin Atómico. Primeiro temos de esperar que a pandemia nos permita deslocações (eu vivo no concelho de Cascais...) e menos distanciamento social; não sei quando isso acontecerá. Para nos encontrarmos teríamos de cruzar as fronteiras bem definidas entre concelhos?
Abraço
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