23 março 2020

Do direito ao esquecimento

Vi sábado de noite, no remanso caseiro de um estado de emergência pandémico, um filme chamado "Thanks for Sharing", que a criatividade demente de um qualquer especialista na matéria decidiu traduzir por "Uma boa dose de sexo". Apesar deste título sugestivo, desenganem-se as pessoas que se atiram ao filme pelo desejo de um erotismo potenciado pelo isolamento. No pico da nudez, Gwyneth Paltrow (uma das protagonistas e uma mulher sempre interessante) limita-se a aparecer em roupa interior. Reproduzo uma parte do que, do filme, diz o jornal Público (não sei a data): 

Apesar de muito diferentes, Adam, Mike e Neil (Mark Ruffalo, Tim Robbins e Josh Gad) travam uma luta comum: o vício em sexo. Ao perceberem como essa obsessão lhes dificulta a relação com os outros e consigo mesmos, decidem inscrever-se num programa de reabilitação que promete curá-los em 12 passos.

Os três personagens do filme referido reivindicam, à sua forma, o direito ao esquecimento. Trata-se da reconstrução das suas vidas, e o direito ao esquecimento do passado é um dever de luta pelo futuro. O passado de cada um de nós, quer sejamos vítimas de uma adição, de uma doença ou de uma desacerto de comportamento, não deve ficar gravado para sempre na internet das nossas vidas. Esquecer não é, neste caso, negar a existência de, mas negar o impacto condenatório e vitalício da existência de. "Sóbrios" durante alguns anos ou durante algumas horas, todos eles (re)caíram porque em dada altura lhes foi negado o direito ao esquecimento, isto é, o seu passado foi um entrave ao presente que se converteria em futuro. Numa dada altura cada um deles deitou fora a medalha que celebrava um tempo de sobriedade, tendo que começar tudo de novo. O que aconteceu? Um passado que os acossou - ou que foi usado como argumento de ruptura.  

Num nível diferente, ninguém sabe como ficará o mundo, Portugal ou a comunidade familiar de cada um de nós quando assentar a poeira do coronavirus. Também aqui teremos de aplicar o direito ao esquecimento. Não negar que ele existiu, que deixou um rasto de cadáveres e sofrimento pelo caminho, mas negar que a pandemia deve ficar para sempre na internet das nossas vidas. O mundo não será o mesmo, mas devemos usar o direito ao esquecimento para nos podermos abraçar, cumprimentar, beijar sem que soframos do horror ao contágio - ou simplesmente do horror ao próximo desconhecido

JdB  

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