17 setembro 2020

Das profissões novas e antigas

Um olhar sobre parte da baixa pombalina remete o observador para uma época que as gerações vindouras conhecem apenas vagamente. Para pessoas que crescerão no tempo do consumo, da industrialização, da produção em massa ou da contrafacção como negócio em desuso, aquela toponímia irá soar estranha, como se lêssemos Eurico o Presbítero e nos confrontássemos com expressões como gardingo ou Latribe. Na verdade, chegará o dia (já chegou?) em que ninguém saberá o que é um correeiro, um fanqueiro ou um dourador. Talvez venha mesmo a desconhecer-se a expressão sapateiro, substituída que foi por um conjunto de actividades executadas por gente que, vinda de fora, se atira a uma meia sola como se atira a um duplicado de chave ou a uma pilha para comando: com um denodo imposto pelo SEF, pela necessidade de sobrevivência e pelo sotaque cantado.

A indústria, a modernidade e o preconceito social eliminaram nomes de profissões do léxico comum. Somos todos técnicos de qualquer coisa e o ikea, com os seus labirintos unidireccionais e a sua leveza actual, atirariam a palavra dourador para um dicionário antigo, porque dourar é (quase) sinónimo de comprar de novo. Já não há sapateiros na Rua dos Sapateiros, nem correeiros na rua dos Correeiros. Talvez já não haja estes misteres em quase lado nenhum de Portugal, substituídos que foram por máquinas, por importação - ou pelos Centros Comerciais, onde a estética da circulação não é compatível com uma oficina amontoada de sapatos velhos a aguardarem reparação.

Na dinâmica da vida quotidiana desapareceram profissões, apareceram profissões: já não haverá fanqueiros, mas há técnicos cardio, por exemplo. Surgiu uma nova actividade a cujos praticantes se chama cuidadores. Na origem vagamente etimológica da palavra cuidador está a expressão dama de companhia, uma ocupação que não mereceu nome de rua (menos ainda de canoa, para parafrasear David Mourão Ferreira). O cuidador é o sapateiro do ser humano: repara ou, numa visão mais preventiva, evita a deterioração. Porém, a dama de companhia (uma actividade que se conjuga no feminino, como varina ou pedicure) é uma expressão que suscita trocadilhos, como se fosse um eufemismo para favores de cariz erótico.

Nesta recém perseguição a um existência mais lenta, mais bairrista, menos poluente, mais local, o mundo pós-pandémico devia recuperar os artesãos, E, nesse alinhamento, devia recuperar a dama de companhia como pessoa que elimina a solidão, que lê para quem não sabe ou não consegue fazê-lo, que evita que as tardes encurtadas de Outono tenham a exclusividade da Júlia Pinheiro, ou que as manhãs sejam só do Goucha e da outra senhora que é dona parcial do sofá onde se senta para falar de trivialidades. Alguém (pode conjugar-se no masculino, como proxeneta ou mecânico) que partilha as notícias do mundo, as receitas da nova cozinha portuguesa ou o último grito de amor de uma jovem actriz. Uma pessoa, no fundo, que cuida da alma, do cérebro, do coração. Uma cuidadora do software que cada um de nós tem implantado no corpo.

O cuidador executa, realiza, actua. A dama de companhia está, é, vive. Enquanto se achar que o mundo vive só da acção, e não da contemplação do Outono do outro, não iremos longe como humanidade...

JdB

1 comentário:

ACC disse...

vc tem graça ! mesmo graça

O dourador, a pilha e dama de companhia como curadores da alma.

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