29 setembro 2020

Do conhecimento da vida (e do corpo) pelos sinais

Disclaimer: este post pode ter uma certa quantidade de lugares-comuns revestidos de um certo dramatismo.

Nos últimos meses fui confrontado com dois casos de cancro em crianças e um caso num bebé. Com excepção desta última situação (sou amigo da mãe e da sua família) não conheço as crianças nem os Pais, apenas alguns avós. Há uns meses, rapaz da minha idade, de quem não era amigo próximo mas que conhecia há muitos anos, morreu com um tumor cerebral. Um destes dias soube também que um parente, poucos anos mais velho do que eu, sofria do mesmo mal. Só falo do que se passou nestes últimos meses, não há necessidade de encontrar outros exemplos de um passado mais ou menos recente.

Estou, por motivos puramente preventivos, numa altura de exames médicos. Talvez esteja tudo óptimo, talvez um dos exames ou das análises revele um parâmetro ligeiramente deslocado, algo que, não sendo preocupante, indique uma necessidade de atenção. 

Entre o parágrafo dos dramas e o parágrafo de uma certa normalidade há um ponto comum, que não é a senilidade insensível de quem os escreve. Tanto o sufoco de quem vê um filho, ou se vê a si próprio, diagnosticado com uma doença grave como os resultados de análises triviais têm uma importância que não é despicienda e que os une: os sinais. Nada como lembrar Rui Veloso a cantar Carlos Tê: Que adianta saber as marés / Os frutos e as sementeiras / Tratar por tu os ofícios / Entender o suão e os animais / Falar o dialecto da terra / Conhecer-lhe o corpo pelos sinais. 

Em virtude de ser presidente de uma associação que lida com crianças com cancro, e de ser quase presidente de uma confederação mundial de associações semelhantes, o tema cancro pediátrico entra-me pelo computador todos os dias: um artigo que é preciso escrever, uma conferência via zoom, um texto científico para ler, um plano estratégico, sei lá mais o quê. Há uma altura a partir da qual o tema, apesar de todo o seu dramatismo, se torna excessivamente científico, árido, estatístico, racionalmente sofredor. São números, gráficos com tendências, referências a medicamentos ou a formas de cancro; não são rostos familiares, sofrimentos aos quais possa atribuir um rosto ou um nome. Saber que um bebé, que esteve em minha casa há pouco tempo e por cuja mãe tenho ternura e amizade, tem um neuroblastoma, dá forma humana à aridez dos documentos ou das estatísticas. É, de certa forma, o rosto de todos os rostos que não consigo ver.   

A vida dá-nos sinais: é o caminho árduo de um parente a 10 anos de cumprir a esperança de vida estatística, é o diagnóstico de cancro em crianças, é uma análise fora do intervalo recomendado para pessoas saudáveis da minha idade. São sinais de tudo: da fragilidade da vida, da necessidade de uma certa auto-vigilância (vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora, diz a Bíblia) da responsabilidade para com os outros, para que não desapareçamos com a casa (uma metáfora para a nossa existência) por arrumar, a meio de quezílias recorrentes, de zangas antigas, de relações cortadas. Para que não desperdicemos a vida, cuja duração nos é (quase) totalmente imprevisível, em inutilidades.  

Todo este post se reveste, seguramente, de um grande lugar-comum, de frases já batidas ou de pensamentos que ficam ocos se não forem recheados com acções. É verdade. Porém, se eu escrever sobre este tema é porque pensei sobre este tema, e talvez isso se torne em acção. Se assim não for, Sartre não tinha razão: o inferno não são os outros.

JdB               

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