O MELHOR DE FRANCIS BACON NA TELA DA DESPEDIDA
O anglo-irlandês, atormentado por traumas de infância dignos dos romances de Dickens – uma mãe estranhamente distante a deixar o filho à mercê de um pai violento, que lhe batia com o cinto para «fazer dele um homem» – pintou inúmeras versões da baixeza humana, explorou incansavelmente a dimensão primitiva da humanidade, até se especializar num retratismo de pendor psicológico apostado em dissecar a faceta mais camuflada e mesmo animal do ser humano. Na revisitação de obras clássicas, o seu pincel demolidor desconstruiu com sarcasmo retratos solenes assinados por Velasquez e outros. Ao invés, quando queria conferir grandeza às pessoas, inculcava-lhes os contornos dos animais preferidos. O toiro era um deles, pelo que se tornou recorrente em telas onde o traço foi benigno.
Tela que serviu de poster oficial da grande exposição no Grand Palais de Paris, em 1972, lembrando a paixão tauromáquica de um dos seus pintores dilectos – Picasso. |
Francis Bacon era aparentado com o seu homónimo de 1561-1626 celebrizado por ter sido o pai do método experimental, relevante para a ciência moderna. Mas por junto, pouco tinha a ver com essoutro cidadão antigo, que fora Tesoureiro Real, Chanceler do Reino, político e filósofo da aristocracia inglesa, embora de final atribulado depois de ser acusado de suborno e corrupção. Já o pintor do século XX movia-se em meios alternativos, relacionando-se com gente pouco convencional, como o seu grande amigo pintor Lucien Freud, também ele familiar (neto) do fundador da psicologia moderna – Sigmund Freud, também ele explorador dos refolhos obscuros da mente humana, igualmente empenhado na denúncia de tudo o que vislumbrava como possíveis «esqueletos no armário» de cada um. Lucien e Francis moveram-se nos círculos boémios de Paris, onde pontificavam Sartre e Simone de Beauvoir, bem como no bas-fond londrino, onde fizeram amizade com marginais e cadastrados do pequeno crime.
Bacon costumava rebater as acusações de materialidade excessiva e indigesta nos seus quadros, explicando que cabia à arte deixar um tipo de rasto corpóreo equiparável ao dos caracóis.
Todavia, para a Partida derradeira, Bacon quis retratar-se na difícil linha de fronteira entre a vida e a morte, na passagem da escuridão para um limiar de luz invulgar segundo os cânones deste pintor pessimista (embora haja críticos que interpretam no sentido inverso, menos óbvio, lendo a figura em marcha à ré, a recuar para as trevas), como na travessia de um espelho à maneira de Alice no País das Maravilhas. Adivinha-se uma transfiguração. Francis estava bem ciente de que a sua hora não tardava, pois avisou os mais próximos, que não o levaram a sério, por o seu estilo enérgico e assertivo nunca ter dado sinais de abrandamento.
Nessa última tela, dias antes de morrer, emerge num toiro cheio de nervo e galhardia, situado numa extremidade do quadro, onde a participação humana se concentra. Ali ensaia um movimento misterioso e sugestivamente de transmutação, com parte do vigoroso dorso a sumir-se em contornos mais esbatidos no lado às escuras. Aquele episódio intenso, mas de curta dimensão, sobressai numa imensidão monocromática de tons terra, característicos da fase terminal do seu cromatismo. Aplicando-se o lay-out das monografias medievais, o pequeno quadrado figurativo, situado no canto superior esquerdo onde se inicia a leitura, equivale à letra inaugural dos textos que os copistas medievos enriqueciam na cor e na forma para abrilhantar o início da página. Bacon deixar o corpo do texto por preencher, ou indecifrável aos nossos sentidos, prefigura a presença desconhecida da morte, inacessível ao olhar terreno. O silêncio que irrompe nesse espaço maior da tela tem pleno sentido.
Por seu turno, o toiro será a melhor metáfora de quem parte já sem medo, ciente de que mergulhará num mistério sem retorno, à maneira de Freddie Mercury, cujo último álbum (lançado postumamente) se chamou «Made in Heaven» na esteira da mensagem dominante das últimas composições, em aproximação serena à morte. Misteriosa confiança a do genial vocalista dos Queen, que explodia de gosto de viver.
Outra invulgaridade em Bacon (diria) é a beleza da tela. Só por si, constitui a melhor homenagem à chegada de um dos (se não o) momentos vitais da sua existência, autoretratando-se num exemplar especialmente brioso no mundo dos vivos.
O enorme significado desta obra, que fecha com chave d’ouro a sua carreira artística, advém também da privacidade a que ficou votada. A ponto de ser uma descoberta recente no seu portfolio, com estreia ao público britânico marcada para a próxima exposição da Royal Academy of Arts de Londres: de 30 de Janeiro a 18 de Abril de 2021. Um bom motivo para atravessar o Canal da Mancha, se a pandemia não atrapalhar… É, obviamente, anunciada como a peça estrela daquela mostra. Intitulada «Francis Bacon: Man and Beast», propõe-se calcorrear os estudos exaustivos do artista às feras da selva e dos zoos para, a partir delas, descobrir a amplitude da instintividade humana, a origem dos medos, da ira e da incrível solidão a que achava condenada a humanidade.
Como medir o salto aparentemente gigante desde o longo período afincado nos retratos esfumados e sulcados de contorcionismos deformados, até ao toiro solitário que se reparte com garbo entre dois universos (não detectando como tónica principal a hesitação titubeante que o tal biógrafo Peppiatt interpreta naquele toiro, ficando a leitura aberta a cada um)? Decorrerá de um percurso existencial único, até desembocar na acrobacia arrojada da última hora em que, inesperadamente, se apresenta pronto, ainda que tenso e a ganhar balanço.
Terá Bacon confiado nalguma nesga de eternidade? Terá intuído mais vida para além desta? Ter tomado para si o primeiro e único signo de leitura de uma imensa tela silenciosa, é revelador. Se de loucos e visionários todos teremos um pouco, maior será o quinhão nos grandes artistas, quase sempre grandes sofredores! Obrigada, Francis.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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