29 outubro 2020

Textos dos dias que correm

Nenhum Amor é Menos Ridículo que Outro

Temos, pois, que ao amor corresponde o amável, e que este é inexplicável. Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de maneira incompreensível o amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e morressem subitamente, ou entrassem em convulsões violentas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal, porque o trágico e o cómico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra», compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que tal acto de diferenciação deve provir de motivos profundos.

Sim, deve necessariamente implicar uma dialética de razões, e quem não as quisesse ouvir ou não as quisesse expor, ganharia mais em desculpar-se com a inoportuna extensão do discurso do que em alegar a falência total de explicações.

Ora a verdade é que o amante não pode explicar nada, não sabe explicar nada. Viu centenas de mulheres; deixou talvez passar muitos anos sem experimentar o amor; e um dia, de repente, vê a sua mulher, a única, a Catarina.

Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão grande força que há-de transformar e embelezar a vida inteira - o amor - nem sequer seja como o grão de mostarda donde deverá surgir uma grande árvore, que seja menos do que isso, que, em última análise, se reduza a um quase nada. Sim, é cómico que do amor não se possa apresentar um só critério prévio, por exemplo a idade em que se produz tal fenómeno, que da escolha da única mulher no mundo não se possa dar a mínima razão, que se haja escrito que «Adão não elegeu Eva, porque não teve possibilidade de a distinguir entre as mulheres».

Não será igualmente cómica a explicação apresentada pelos amantes? Ou melhor, essa explicação não servirá para acentuar ainda mais o aspecto cómico? Os amantes dizem que o amor os cega, e depois de dizerem isso é que tentam iluminar o fenómeno. Se um homem entrasse numa câmara escura para ir lá buscar um objecto qualquer, e se respondesse «não vale a pena, a coisa não tem importãncia», a quem lhe dissesse que procuraria melhor se levasse consigo uma luz, eu compreenderia muito bem a atitude desse homem. Mas se esse mesmo homem me chamasse à parte para em grande mistério me confiar que ia buscar uma coisa importantíssima, e que por isso mesmo tinha de a procurar às cegas - como poderia a minha pobre cabeça de mortal seguir a subtileza de tão desconcertante linguagem! Evidentemente que não lhe riria na cara, para não ofender; mas, assim que ele voltasse as costas, não poderia mais conter a vontade de rir.

(...) Se me entrego à hilaridade, estou muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém, esses loucos, persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificado que podem de bom grado mofar dos outros amantes; pois, uma vez que o amor se furta a qualquer explicação, todos os amantes se tornam igualmente ridículos.

Soren Kierkegaard, in "O Banquete" (Discurso do Mancebo, sem experiência no amor)

28 outubro 2020

"Se formos de Ferrari, poderemos ir rezar pelos nossos mortos?" *

 



(...)

Ora o que este governo tem andado a fazer, no seu ziguezaguear covídico, é, de facto, uma refracção preguiçosa do anticlericalismo republicano. Serôdio, inútil. É um quadro mental patético, porventura até vivido de modo inconsciente. E sinaliza o disparatado em que decorre a administração da saúde, como o resmungam os profissionais.

A excelente prédica deste padre, insurgindo-se contra a proibição do culto aos antepassados, diz tudo o que é preciso ouvir. Que o Deus dele o tenha na sua santa guarda.

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* O vídeo foi-me enviado ontem, no espaço de 15 minutos, por quatro mãos diferentes. O texto (apenas um trecho) copiei-o do blogue Delito de Opinião, tendo usado a mesma citação como título.

27 outubro 2020

Textos dos dias que correm

«Isto de ser um ateu católico não é fácil e inquieta»

«“O mundo existe para todos, porque todos os seres humanos nascem nesta Terra com a mesma dignidade”, diz o papa Francisco na última encíclica, “Fratelli tutti”. Não foram estes os ensinamentos que a Igreja me deu, não é essa a história desde há muito tempo.»

A encíclica “Todos irmãos” constitui o principal fundamento para o texto que o comentador político Pedro Marques Lopes na crónica semanal que assina do “Diário de Notícias”, intitulada “Quo vadis, Francisco?”.

«O encantamento com que fui lendo a última encíclica papal, “Fratelli tutti”, foi-se misturando com uma espécie de angústia, perguntas que me ia esforçando por afastar: e se tivesse sido isto? E se fosse esta a prática, tivessem sido estes os ensinamentos? Se fosse este carinho, esta hospitalidade para as nossas fraquezas, esta compreensão da nossa natureza, ter-me-ia afastado da Igreja? Se fosse este o entendimento da nossa vida em comunidade, ter-me-ia afastado da Igreja?», interroga.

Depois de citar o Evangelho (Mateus 18,18, «em verdade vos digo: Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no Céu», assinala: «A mim desligaram-me na terra e entupiram-me a comunicação. No fundo, desligando-me na Terra com atos e omissões negaram-me a possibilidade da fé, até a possibilidade de Deus».

«A Igreja é feita de homens, e estes erram. Pois, foram demasiados a errar. E continuam a errar e a promover o erro e a desumanidade», aponta, antes de concluir com uma referência inspirada na encíclica «Todos os seres humanos nascem nesta Terra com a mesma dignidade» (n. 5)

Pedro Marques Lopes também menciona as palavras de Francisco sobre a legislação relativa às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, recuperadas no documentário “Francesco”, tema que por estes dias tem mobilizado colunistas, para quem, independentemente das suas posições quanto à fé cristã e à Igreja, não têm sido indiferentes as palavras do papa.

Com efeito, aquelas «palavras de Francisco ecoarão na Igreja, merecendo a alegria e eco de muitos e a repulsa dos que o abominam; darão alento aos que se batem contra a discriminação e talvez façam pensar duas vezes os que desejam reforçá-la; e a cidade inteira as discutirá, as opiniões e práticas da Igreja não tocam apenas os fiéis», observa o psiquiatra, «agnóstico», Júlio Machado Vaz, no “Jornal de Notícias” de domingo.


Rui Jorge Martins

Fontes: Diário de Notícias (Pedro Marques Lopes), Jornal de Notícias (Júlio Machado Vaz)

Publicado pelo SNPC em 26.10.2020

26 outubro 2020

Ainda da confiança

Podemos viver sem Fé (no sentido religioso da palavra) mas não podemos viver sem confiança, sob risco do edifício que nos sustenta ruir por excesso de tensão interna. Talvez fulana tenha sido agraciada com tudo - aquilo que é desejável e aquilo que é imprescindível -, e viva nesta certeza sossegada de que há caminhadas agrestes mas que, apesar disso, pode confiar no sentido das coisas, no mistério que é existir, nos olhos que não se desviam, na esperança de mais um emprego temporário, nas cruzes injustas que a levam ao Céu, no amor retribuído de um filho adulto a quem ela faz a barba com desvelo. 

Confiar é acreditar que na vida tudo tem uma solução. Confiar é saber que precisamos de procurar e construir o nosso caminho, mas que há alturas em que devemos fechar os olhos, descansar a alma e os braços, e acreditar que a nossa existência é um puzzle cujas peças tendem para o encaixe. É ter, tantas vezes, o olhar simples de uma criança que acha que ser pequeno e ter esperança no destino são coisas boas. Confiar, confiar, confiar. Estará aí a solução para muitos problemas?

***

Escrevi o texto acima (o original é mais extenso, retirei apenas estes parágrafo) há mais de sete anos, a propósito de uma pessoa que vivia com dificuldades financeiras e familiares sérias e de cuja boca nunca se ouvia um queixume. Enviei-o ontem a uma jovem mãe que, do outro lado do oceano, se confronta com uma filha com cancro, diagnosticada a um dia de fazer um ano.

(Curiosamente - e talvez este curiosamente seja uma palavra desadequada) nas últimas semanas / meses falei, troquei correspondência, com três mães que passam pelo mesmo.)

Vou sabendo notícias do Brasil, deste bebé numa situação desafiante. Vou trocando mensagens com a mãe, partilhando alguma coisa do que partilharam comigo há 19 anos: a ideia de que todos os dramas são suportáveis se fizermos deles uma história, a ideia de dar um sentido às coisas, a ideia de que, perante o drama, não podemos perguntar porquê, mas para quê. Talvez ela, a mãe desta criança, dona de uma força, de um optimismo e de uma confiança que me enternecem, já tenha percebido tudo, e a frase que ela me escreveu há uns dias, e se este for o propósito que Deus tem pra Camila, já valeu... (sendo que o propósito é o chamamento de pessoas, através do testemunho da mãe, para fazerem dádivas (penso que não será simplesmente sangue) a indicação clara de que algo se acendeu dentro daquela família.

Termino com um diálogo, tirado d' A Paixão de Shakespeare, a que recorro amiúde:

- Vai correr tudo bem...

- Mas como?

- Não sei, é um mistério. 


JdB

25 outubro 2020

XXX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 22,34-40

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os fariseus, ouvindo dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus,
reuniram-se em grupo,
e um doutor da Lei perguntou a Jesus, para O experimentar:
«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?».
Jesus respondeu:
«'Amarás o Senhor, teu Deus,
com todo o teu coração, com toda a tua alma
e com todo o teu espírito'.
Este é o maior e o primeiro mandamento.
O segundo, porém, é semelhante a este:
'Amarás o teu próximo como a ti mesmo'.
Nestes dois mandamentos se resumem
toda a Lei e os Profetas».

22 outubro 2020

Textos dos dias que correm

O que diz Dante e a “Divina Comédia” a estes tempos de pandemia?

Como todo o não-italiano, detenho-me sempre de novo com admirado maravilhamento diante deste monumento da cultura italiana [“(Divina) Comédia”, de Dante Alighieri], e, como todo o leitor, considero-me pequeno e frágil diante de tanta elevação, mas nunca estranho e indiferente, porque o milagre da poesia de Dante é precisamente o de fazer sentir em casa cada pessoa que lhe vá ao encontro com espírito aberto e recetivo, de conduzir cada um de nós a reconhecer-se na humanidade ferida e redentora que ela representa, com uma verdade e uma profundidade que tem poucas comparações na literatura mundial.

As páginas que pretendo ler convosco, que encontramos no segundo canto da segunda parte, colocam-nos numa fase de transição, na passagem perplexa e cautelosa entre um ciclo acabado de concluir (a travessia infernal do mal privado de redenção) e o início de um novo (a purgatória reconstrução do bem através da expiação purificadora). Dante e Virgílio, acabados de subir da voragem infernal, vagueiam pela margem da ilha do Purgatório para encontrar o ingresso da montanha penitencial. A novidade da situação, a ausência de direções traçadas, desconcerta-os, retarda-os, confunde-os. O Antipurgatório, espaço de suma indefinição e desorientação, aprisiona quem o atravessa num estado de inércia, de impasse: Do mar ao longo inda éramos nessa hora,/ Como quem pensa no seu caminho,/ que vai com o coração e com o corpo demora (cf. “Purgatório” II, 10-12). Como acontece a todos aqueles que não sabem que estrada escolher, o coração diz aos dois viandantes que têm de avançar, mas trava-os a incerteza sobre o que fazer: ficam bloqueados. Bem depressa descobrem que não estão sós nesse estado de indecisão. Pelo leme de um anjo enigmático e silencioso, desembarca, com efeito, na margem um grupo de almas nem beatas nem penitentes, também elas à procura do acesso ao percurso de purificação, e não menos desorientadas que os dois poetas: A turba que ali permanece, selvagem/ parecia de espanto apoderada, olhando à volta/ como quem novas coisas experimenta (cf. 52-54).

Esta turba, agitada pela novidade daquilo que está a experimentar, comporta-se como todo o viajante privado de mapa, que pede informações ao primeiro desconhecido com quem se depara. Quando nos sentimos perdidos, é difícil encontrar quem nos possa guiar: Quando a nova gente ergueu a fronte/ a nós se dirigiu dizendo:/ “Se sabeis,/ mostrai-nos o caminho para chegar ao monte”./ E Virgílio responde: “Vós acreditais/ talvez que somos especialistas deste lugar;/ mas nós somos peregrinos como vós o sois” (cf. 58-63).

Como toda a geografia da “Comédia”, o Antipurgatório não representa um lugar, mas um estado, especificamente a condição de se ser recém-chegados, de se estar numa situação que nos apanha completamente impreparados, na qual as nossas coordenadas habituais se tornam insuficientes e falíveis, lançadas fora por uma crise intensa, que acabámos de superar, mas que ainda domina sobre nós: Chegámos aqui, de vós pouco antes,/ por outra estrada, tão áspera e forte,/ que subir ao monte, em comparação, é jogo de crianças (cf. 64-66). Ao ler estes versos, poderoso e irresistível, toma corpo, aos nossos olhos de leitores, o paralelo entre a cena descrita por Dante e o momento histórico que estamos a viver. Também nós, neste singular setembro de 2020, agora para além do ponto de inflexão de um ano excecionalmente doloroso e denso de perguntas ainda sem resposta (acabados de sair de uma estrada áspera e forte que profundamente nos provou como indivíduos e como comunidade), nos encontramos numa espécie de Antipurgatório; também nós experimentamos coisas novas, como a turba de almas que se cruzaram com Dante e Virgílio, e ninguém se sente capaz de dizer experiente do lugar para onde a pandemia nos arremessou, colhendo-nos totalmente de imprevisto, abrindo cenários inéditos, sacudindo certezas, hábitos que pareciam inabaláveis de tal maneira eram óbvios, a indolente rotina da normalidade.

Olhamos à nossa volta, desorientados e perplexos, e não reconhecemos esta estação estranha. Não sabemos que outono nos espera, se de isolamento ou de presença reencontrada. Sentimo-nos bloqueados, nesta terra incógnita que queremos atravessar o mais rapidamente possível, olhando em redor sem saber exatamente que caminho escolher para sair. Nenhuma pessoa sensata se arrisca a desenhar mapas e a batizar percursos. Os experientes descobrem-se inexperientes nesta fase forçosamente transitória na qual todos somos peregrinos, recém-chegados e desejosos de sair o quanto antes, se ao menos soubéssemos como… Uma só coisa, porém, é certa na incerteza total do momento: a crise do coronavírus, que se faz tão áspera e forte, transportou-nos para um mundo desconhecido, nada será como antes, e a novidade é tão grande, que hesitamos, sabendo que, em todo o caso, será um caminho de árdua reinvenção, de redefinições purificadoras.

Se desejamos um futuro para a nossa sociedade, temos de enfrentar o purgatório de colocar em questão erros, excessos e omissões. Naquele momento extraordinário de oração que o papa Francisco celebrou sozinho no adro da basílica de S. Pedro, em março passado, recordou-nos: «Caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem… Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente». Temos, agora, de aceitar o doloroso exercício das “correções”, como corajosamente propôs, recentemente, um autor americano.

Obviamente, resistimos. Retardamo-nos, adiando, mais ou menos conscientemente, o momento de nos despedirmos do mundo que deixamos para trás para nos adentrarmos naquele que lhe segue. Como quem pensa no seu caminho,/ que vai com o coração e com o corpo demora, pensamos até ao infinito naquilo que há a fazer, mas tergiversamos, agarrando-nos ao “dejà vu”. O pensamento da purificação purgatória é intimidatório, e foi extirpado da nossa autoconsciência de modernos, ilusoriamente substituído por formas secularizadas de autoaperfeiçoamento, que acabam por reforçar o narcisismo e a solidão. O Purgatório, segundo o Catecismo da Igreja católica, recorda-nos que estamos «imperfeitamente purificados» e que devemos submeter-nos «a uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu».

Também no plano histórico temos de empreender o difícil caminho purgatório da correção do nosso modo de viver, dos nossos hábitos, da inércia a que nos acomodámos há demasiado tempo, deixando que a Terra corresse de encontro ao colapso ecológico, as que as diferenças económicas se aprofundassem de maneira iníqua, que o tecido comunitário se degradasse na estéril cegueira do individualismo. Seremos capazes? Esta pergunta pesa sobre nós como um grande desafio, marcado pela consciência de que aquilo que temos pela frente é um caminho que não se percorre a sós. Requer um compromisso comum, uma sintonia coral: “Isräel de Aegypto”/ cantavam todos a uma voz (cf. 46-48). Só cantando a uma só voz se sai do Egito do mal para reencontrar a liberdade de uma convivência de justiça e de paz, para chegar à terra prometida de uma sociedade em que a dignidade de cada um floresce ao pôr em comum recursos e oportunidades, em que a solidariedade leva a melhor sobre a competição, a tenção recíproca sobre a indiferença, o respeito e a confiança sobre a violência e a desconfiança.

Card. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 21.10.2020


21 outubro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

ARMADILHA A PARTIR DOS APAGÕES DA MEMÓRIA 

Há meses, alguma ala do “politicamente correcto” incentivou (nos bastidores) o derrube de estátuas e os julgamentos ad hoc às figuras do passado, embarcando na estultice de avaliar os antecessores pelo crivo da nossa época. É menos a vontade de reescrever a História, e mais a de a reduzir a insignificâncias sem o menor interesse para o presente, menos ainda para o futuro. Erradicam-se, quaisquer outras possibilidades de referência para lá das ditadas pelos líderes em funções, como se a humanidade estivesse a tatear os primeiros passos no mundo. A dita onda de violência anti património seria uma demência acéfala, se não fosse em grande parte alimentada por uma minoria manipuladora, apostada em derrubar o  passado. Depois de pôr a rebelião a rolar, deixa às multidões enfurecidas os estragos no terreno. Entrámos num jogo kamikaze equivalente, de algum modo, à razia criminosa do Daesh à cidade histórica de Palmira, que chocou – com toda a razão – o mundo desenvolvido. 

Em boa verdade, há anos que assistimos a uma estranha vigilância sobre a linguagem, tanto mais inexplicável quanto vivemos em contexto democrático, respeitador – garantem-nos – da liberdade de expressão. Pode alguma democracia saudável aceitar policiamentos das opiniões? Até a denominação eufemística de “politicamente correcto” revela a necessidade de camuflagem desse policiamento impiedoso e não-assumido, que actua como se estivesse legitimado para corrigir a seu bel prazer, de modo a impor determinada mentalidade. 

Convenhamos que o branqueamento de imagem no nome deste movimento, nos antípodas da sua prática, já deveria disparar campainhas de alarme. A práxis não podia ser mais suspeita (nisso, auto-denuncia-se), ao isentar-se de cumprir o que exige aos outros, porque há “uns” e “outros”. Quais igualdades! Um exemplo recorrente: não toleram o menor desvio ao padrão que querem instituir, porém, a primeira acusação é taxarem o alegado transgressor de intolerante fundamentalista e preconceituoso. Segue-se o linchamento de personalidade. Ou seja, atacam para esconder a sua própria arma de intolerância, além de desferirem um golpe ad hominem. A mentira descarada também ajuda à afirmação de poder, impondo-se pela intimidação, e não por alguma virtude ou outra fonte de autoridade moral verificável por todos. A crueldade é um ingrediente útil neste escrutínio abusivo e exagerado, pelo mesmo motivo por que os gangsters fazem gala em impor a lei do mais forte. É o seu trunfo. Intencionalmente, tudo é dito ao contrário, para criar um caos onde ninguém se entende mas a maioria fica acossada pela agressividade dos "vigilantes". Não, não pretendem debater nenhuma ideia, mas apenas descredibilizar quem se atreve a pensar por si e minar toda a possibilidade de diálogo mais profundo. Visam, assim, acabar com o pensamento pessoal, reduzindo o indivíduo a caixa de ressonância do chefe ou da suposta moda. Lenine, Trotsky e toda a elite bolchevique aplicaram tudo isto e, por isso, a revolução russa batalhou encarniçadamente no campo das ideias, das opiniões, acabando com qualquer veleidade de debate público (e de personalidade) não-controlado pelo Estado, isto é, pelos líderes. Apenas os dirigentes ou “o Partido” de um lado e do outro as "massas" ou o "colectivo" ou os “cidadãos” / “camaradas”/ "companheiros”, conforme as traduções locais nos diferentes pontos do planeta, esbatendo-se sempre a dimensão individual, única.

Orwell foi claro sobre o poder do vocabulário para formatar mentalidades. Basta rever a Revolução Francesa para lembrar a relevância da guerra em torno do domínio das palavras, travada com uma raiva difícil de perceber, se não tivermos presente que a linguagem tem enorme impacto no pensamento, ajudando a  estruturá-lo. “Cidadãos”, “igualdade”, “liberdade”, “revolucionários” versus “reaccionários”, “esquerda” versus “direita” (por causa do lugar onde se sentavam uns e outros, na Assembleia Nacional francesa) foram alguns dos conceitos-pivot daquela onda, que pretendia aniquilar os vestígios do passado e inaugurar uma nova era, a partir do zero. Finalmente, um progresso limpo, bramavam. Daí que os revolucionários mais extremistas reiniciem a contagem dos anos a partir do dia da sua chegada ao poder. De facto, o apagamento radical da história é parte integrante dos processos revolucionários de matriz totalitária.

Nega-se a mais elementar lealdade de reconhecer quanto cada geração recebe um notável legado que vem das que a precederam, cabendo-lhe depois transmiti-lo enriquecido aos filhos e netos. Na sua Encíclica mais recente «Fratelli Tutti» (Todos Irmãos), o Papa denuncia o «desconstrucionismo em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero», num «individualismo sem conteúdo», numa «perda do sentido da história» (13º parágrafo). Denuncia, assim, as raízes de uma tirania sub-reptícia da actualidade, disfarçada de libertadora. 

É um engodo encarar o passado como uma carga escusada, apesar dos aspectos negativos que também chegam à nossa época, porque podemos triar o que vale a pena, com a prudência mínima de antecipar que nos poderá faltar clareza para aferir em pleno a validade de avanços audaciosos dos nossos antepassados. Assim tem acontecido com a investigação de matemáticos de outros séculos, com fórmulas criativas que só encontraram aplicação na linguagem informática. Todavia, alguma (ou muita) coisa pode ser descartada sem desgosto, cientes que do tempo do Hermitage não há necessidade de preservar todos os edifícios, embora o palácio que alberga o célebre Museu seja fundamental, etc.   

De 1821, subsiste um mapa-mundi com uma classificação muito curiosa dos países, baseada em noções que hoje só vingariam em documentos secretos para leituras muito segmentadas. Começa por estar centrado no Pacífico, em vez do Atlântico. Depois, ordena os países e as grandes regiões pelo grau civilizacional, do “iluminado” até ao “selvagem” [sic], interessando-se ainda pela quantidade estimada de população, pelo regime político e pela confissão religiosa. Adivinha-se serem dados de caracterização dos impérios ultramarinos, embora hoje seja consensual distinguir os Estados pelo grau de desenvolvimento, dos “desenvolvidos” aos “sub-“. Este exemplar pertence à colecção de David Rumsey: 


Se o mapa de oitocentos desafia os conceitos “inclusivistas” hoje na berra, já o filme rodado por Chaplin, há cem anos, mantém enorme actualidade, guarda-roupa à parte. O filme tem algumas invulgaridades como o facto de Chaplin quase não aparecer e de se tratar de um drama romântico, em vez de comédia. A seguinte cena emblemática de «A WOMAN IN PARIS» (1923) é rodada na sala de jantar de um restaurante de luxo, na cidade de luxo que Paris era e ainda é. Assim parodia com uma das coqueluches da sofisticação ocidental – o culto da gastronomia e todo o ritual circundante, como expoente da elegância e da “joie de vivre” (creio que “alegria de viver” fica aquém da expressão francesa consagrada). Impressionante confirmar que continuamos enfeitiçados pela comida, pelo status, pelo puro exibicionismo social, igual aos loucos anos 20 do século passado. Neste despique de convencidos, calha em cheio a arrogância do Chefe de cozinha, agastado pelos tiques arrivistas de um endinheirado a gostar de passar por gourmet…  É caso para dizer que o estatuto não é para quem quer, mas para quem sabe – como reza um antigo ditado popular, aqui ligeiramente adaptado. Irónico também as ‘delicatessen’ mais apreciadas por humanos fazerem as delícias dos porcos no curral. Parece uma aplicação à letra da expressão ‘podre de chique’.


Recuando ao século XVI, uma pintura holandesa retrata uma metrópole que exibe um cosmopolitismo à maneira do nosso tempo, incrivelmente vanguardista para aquele tempo. Curioso, os historiadores não hesitarem em associar aquele mosaico multi-étnico à cidade de Lisboa! Aquela praça da capital do império já leva as marcas de uma certa amálgama do estilo de vida português, mais espontâneo que ordenado, aberto, comunicativo, numa elasticidade sociológica natural, não-premeditada, onde (quase) tudo cabe. Desembocamos nesta misturada tranquila e sumamente subtil, basicamente por via intuitiva, sem necessidade de grandes tomadas de consciência:


Recuando para a era AC, ao tempo do grande rei Salomão, esbarramos na origem, quer dos arrivismos revolucionários, quer do móbil de vida dos putativos dandies, que vivem para impressionar os semelhantes. Afinal, têm (pelo menos) uma raiz comum, provavelmente partilhada pela primeira geração que povoou a terra: «Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?  Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece. Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu. […] Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche […]. O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.» (Eclesiastes 1:2; 12:8)

Eleanor Roosevelt, a Primeira-Dama norte-americana do tempo da Segunda Guerra, gostava das máximas dos povos do deserto e uma delas ditava assim: "aprenda com os erros do passado, porque não tem tempo de os experimentar todos!" Até por isso, vale a pena reparar no que herdámos, escolher o que interessa e desse modo melhor preparar o futuro. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

20 outubro 2020

Das perdas *

Ontem, por motivos que não vêm ao caso, citei as primeiras palavras do Amazing Grace, um hino tradicional protestante, com letra escrita pelo inglês John Newton e impresso pela primeira vez em 1779:

Amazing Grace, how sweet the sound
That saved a wretch like me
I once was lost but now am found
Was blind, but now I see

O tema da conversa não era o protestantismo, nem sequer a música [que aqui disponibilizo num versão gospel]. Falávamos de perdas, no seguimento de um texto que encontrei há algumas semanas num blogue e que enviei a várias pessoas:

Na sequência da discussão anterior, o que se pode opor à perda de lei (o nosso amor, um filho, um pai querido etc)? Tanto quanto sei hoje, misturando a experiência pessoal, a profissional e as leituras, só existe uma coisa. Uma única coisa.

Recapitulemos. As grandes perdas são histórias de destruição natural, como as de Sebald, Arrasam planos, esperanças, sim, mas também a vontade e o quotidiano. Um pouco como um avião que nos leva para um fuso horário desconhecido, num descampado onde até as nossas mãos não parecem nossas. Basta sentarmo-nos à mesa, à hora habitual, e olhar para  a cadeira agora vazia: jet lag demoníaco.
A rotina é uma aliada. Como nas cidades destruídas, reerguer as paredes, limpar um poço, procurar batatas velhas. Ou seja, levantar cedo, ir trabalhar, suportar  o trânsito. Não chega, essa pele fina de normalidade.

A unica coisa com potencial equivalente à destruição é a criação. John só muito tarde percebe o que é o  grande malogro -  "não ser nada" -  quando Mary morre finalmente. A Fera na Selva vale por uma enciclopédia de psicologia, porque mostra o axioma numa cronologia contrariada.

E o que é criar por oposição a perder? É pintar, escrever, ler, plantar, fazer um amigo, arranjar um amante, ter um filho, enfim, fazer de novo. Só assim a perda se integra e  ocupa o seu lugar na ordem natural das coisas.

Na volta do correio vieram várias respostas, porque a conclusão do texto, como dizia um amigo, é uma resposta, não é a resposta. Ou, precisando, talvez seja parte da resposta. Com outro bom e estimado amigo a conversa rondou para outros ventos: pode aquilo que nos faz mal e que abandonamos ser considerado uma perda? 

O tema das perdas levar-nos-ia longe e a mim fenece-me a sabedoria para o desenvolver de um ponto de vista mais genérico, sem enveredar por experiências próprias. Do que precisamos, na realidade, para superar as perdas? É a criação, como vem no texto reproduzido? É o sentido para a vida, como falava Viktor Frankl, o homem da logoterapia? É a fé? É uma vontade indómita e totalmente racional? Não sei. Já vivi o suficiente para saber que não sei, que cada caso é um caso, que os lutos (no sentido lato da da perda, e não forçosamente da morte) se fazem de forma diferente, porque cada um de nós é um mundo irrepetível.

A letra do hino - sobretudo a primeira quadra - é particularmente elucidativa e, diria mesmo, universal. De todas as perdas, mesmo os abismos que abandonamos, os Homens saem perdidos. Vencer a perda - qualquer que ela seja - é poder gritar bem alto, mesmo que seja para dentro de nós próprios, que a cegueira e os desnorte foram vencidos. 

JdB 

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* publicado originalmente em 25.07.2013     

19 outubro 2020

Imagens e poemas dos dias que correm

Encontrado um destes dias num carrinho de supermercado

 

Dobrada à Moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

18 outubro 2020

XXIX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 22,15-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os fariseus reuniram-se para deliberar
sobre a maneira de surpreender Jesus no que dissesse.
Enviaram-Lhe alguns dos seus discípulos,
juntamente com os herodianos, e disseram-Lhe:
«Mestre, sabemos que és sincero
e que ensinas, segundo a verdade, o caminho de Deus,
sem Te deixares influenciar por ninguém,
pois não fazes acepção de pessoas.
Diz-nos o teu parecer:
É lícito ou não pagar tributo a César?».
Jesus, conhecendo a sua malícia, respondeu:
«Porque Me tentais, hipócritas?
Mostrai-me a moeda do tributo».
Eles apresentaram-Lhe um denário,
e Jesus perguntou:
«De quem é esta imagem e esta inscrição?».
Eles responderam: «De César».
Disse-lhes Jesus:
«Então, daí a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus».

16 outubro 2020

Pensamentos dos dias que correm

 Só Sente Ansiedade pelo Futuro aquele cujo Presente é Vazio

O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a prolongar. Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida "os últimos retoques" nunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver. Qual o modo de escapar a uma tal ansiedade? Há um apenas: que a nossa vida não se projecte para o futuro, mas se concentre em si mesma. Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio. Quando eu tiver pago tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é indiferente viver um dia ou viver um século, então poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do tempo! Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana se nós estivermos firmes perante a instabilidade? Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida completa. Quem formou assim o seu carácter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que mais não faz do que desgraçar tudo.

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

14 outubro 2020

Músicas e ideias dos dias que correm

A cantata Ich habe genug de Bach (já tenho o suficiente, tradução minha) foi-me apresentada por António Barreto numa entrevista que deu a Fátima Campos Ferreira e que passou na 2ª feira, pelas 21.00h, na RTP1. Recomendo vivamente que a vejam.

Fui investigar as razões para o nome da Cantata. Do pouco que encontrei estará relacionado com Simeão, um homem justo e piedoso de Jerusalém a quem o Espírito Santo revelou que não morreria "antes de ter visto o Messias do Senhor". Citemos a Bíblia:

Simeão tomou-o nos braços e bendisse a Deus, dizendo:

Agora Senhor, segundo a Tua palavra, 
deixarás ir em paz o teu servo, 
porque meus olhos viram a salvação.
que ofereceste a todos os povos.
Luz para se revelar às nações
e glória de Israel, teu povo.

(Lc. 2, 28-36)

A cantata é muito bonita (do vídeo consta apenas uma parte, dos cerca de 24 minutos totais) e vale a pena, não só ouvir, como pensar na sabedoria de Simeão. Ao tomar Jesus nos braços entendeu dizer o que disse, e que para Bach era Ich habe genug.

JdB

13 outubro 2020

Patetices dos dias que correm

"O professor de Ginecologia. Deu início à série de conferências da seguinte forma: meus senhores, a mulher é um animal que urina uma vez por dia, defeca uma vez por semana, menstrua uma vez por mês, pare uma vez por ano e copula sempre que tem oportunidade.

Achei que era uma frase bem equilibrada."

Somerset Maugham, em A Writer's Notebook (entrada de 1894, tradução minha) 

***

Há frases que não chocam, e esta é uma delas. É natural que o escitor inglês tivesse sorrido perante o pensamento do professor de Ginecologia, já que era, dizem, pouco adepto do sexto feminino. A frase, repito, não choca, embora uma pequena parte seja factual. Porquê? Porque há pensamentos que, de tão insultuosos, passam a humor. Estou certo de que o humor é, numa certa medida, de direita. A esquerda não tem humor, porque lê a frase e acha que ele foi proferida por um energúmeno, machista e explorador da mulher. Mas a frase é só humor, apesar dos seus 130 anos. A esquerda tem uma ausência muito grande de humor, como os puritanos ou alguns fundamentalistas religiosos: levam-se muito a sério, levam tudo muito a sério. Imaginar um professor de ginecologia a usar expressões aplicadas à mulher como "mictar" e "parir" só pode dar vontade de rir. 

JdB    

12 outubro 2020

Duas Últimas

 


A gente não lê

Ai Senhor das Furnas Que escuro vai dentro de nós, Rezar o terço ao fim da tarde, Só pr'a espantar a solidão, E rogar a Deus que nos guarde, Confiar-lhe o destino na mão. Que adianta saber as marés, Os frutos e as sementeiras, Tratar por tu os ofícios, Entender o suão e os animais, Falar o dialecto da terra, Conhecer-lhe o corpo pelos sinais. E do resto entender mal, Soletrar assinar de cruz, Não ver os vultos furtivos, Que nos tramam por trás da luz. Ai senhor das furnas, Que escuro vai dentro de nós, A gente morre logo ao nascer, Com os olhos rasos de lezíria, De boca em boca passando o saber, Com os provérbios que ficam na gíria. De que nos vale esta pureza, Sem ler fica-se pederneira, Agita-se a solidão cá no fundo, Fica-se sentado à soleira, A ouvir os ruídos do mundo, E a entendê-los à nossa maneira. Carregar a superstição, De ser pequeno ser ninguém Mas não quebrar a tradição Que dos nossos avós já vem.

11 outubro 2020

XXVIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 22,1-14

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se de novo
aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo
e, falando em parábolas, disse-lhes:
«O reino dos Céus pode comparar-se a um rei
que preparou um banquete nupcial para o seu filho.
Mandou os servos chamar os convidados para as bodas,
mas eles não quiseram vir.
Mandou ainda outros servos, ordenando-lhes:
'Dizei aos convidados:
Preparei o meu banquete, os bois e os cevados foram abatidos,
tudo está pronto. Vinde às bodas'.
Mas eles, sem fazerem caso,
foram um para o seu campo e outro para o seu negócio;
os outros apoderaram-se dos servos,
trataram-nos mal e mataram-nos.
O rei ficou muito indignado e enviou os seus exércitos,
que acabaram com aqueles assassinos e incendiaram a cidade.
Disse então aos servos:
'O banquete está pronto, mas os convidados não eram dignos.
Ide às encruzilhadas dos caminhos
e convidai para as bodas todos os que encontrardes'.
Então os servos, saindo pelos caminhos,
reuniram todos os que encontraram, maus e bons.
E a sala do banquete encheu-se de convidados.
O rei, quando entrou para ver os convidados,
viu um homem que não estava vestido com o traje nupcial.
E disse-lhe:
'Amigo, como entraste aqui sem o traje nupcial?'.
Mas ele ficou calado.
O rei disse então aos servos:
'Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o às trevas exteriores;
aí haverá choro e ranger de dentes'.
Na verdade, muitos são os chamados,
mas poucos os escolhidos».

09 outubro 2020

Poemas dos dias que correm *

O Poder de Circe

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

Louise Glück, Nobel da Literatura 2020 (tradução de José Alberto Oliveira). 

***

Paisagem/3

Nos fins do outono uma rapariga deitou fogo
a um trigal. O outono

fora muito seco; o campo
ardeu como palha.

Depois não sobrou nada.
Se o atravessávamos, não víamos nada.

Nada havia para colher, para cheirar.
Os cavalos não compreendem –

Onde está o campo, parecem dizer.
Como tu ou eu a perguntar
onde está a nossa casa.

Ninguém sabe responder-lhes.
Não sobra nada;
resta-nos esperar, a bem do lavrador,
que o seguro pague.

É como perder um ano de vida.
Em que perderias um ano da tua vida?

Mais tarde regressas ao velho lugar –
só restam cinzas: negrume e vazio.

Pensas: como pude viver aqui?

Mas na altura era diferente,
mesmo no último verão. A terra agia
como se nada de mal pudesse acontecer-lhe.

Um único fósforo foi quanto bastou.
Mas no momento certo – teve de ser no momento certo.

O campo crestado, seco –
a morte já a postos
por assim dizer.

Louise Glück, Nobel da Literatura 2020  (Tradução de Rui Pires Cabral)

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08 outubro 2020

De dois aforismos

Há um aforismo antigo que afirma que os olhos são o espelho da alma. Um aforismo porventura menos antigo, e de Wittgenstein, afirma que o corpo humano é a melhor imagem da alma humana. Se não nos ativermos à diferença estrita entre espelho e imagem, podemos deduzir que ambos - o corpo e os olhos - reflectem a alma de cada um de nós. Ora, em acreditando que só o ser humano é detentor de alma, devemos então inferir, de ambos os aforismos, que os olhos ou o corpo são aquilo que nos distingue dos animais. 

No entanto, é curioso pensar que esta distinção assenta num elemento - a alma. Não é o cabelo, a forma dos pés, a colocação das orelhas num crânio, o formato das unhas. Esse elemento chama-se alma, algo que nunca ninguém viu, e de cuja existência muita gente duvida. Por outro lado, se entendermos que os olhos são o reflexo da alma e que o corpo é o espelho da alma, uns olhos que sejam muito humanos, ou um corpo muito semelhante ao humano, poderão significar uma alma muito parecida com a humana - o que quer que isso seja. Alguns símio têm um corpo quase humano; podemos deduzir que também podem ter uma alma quase humana? 

Uns olhos estrábicos reflectem o quê? Uns olhos zargos indicam o quê? Uma deficiência física de nascença revela o quê? A que tipo de corpo ou a que tipo de olhos devemos - ou podemos - associar uma alma perfeita? Podemos construir um corpo que seja o lugar geométrico do corpo de todos os santos de todas as épocas e, com base nessa fusão, determinar o que é um corpo bom (diferente de um bom corpo) que reflecte o que é uma boa alma?

A utilização obrigatória da máscara em sítios públicos trouxe o(s) aforismo(s) para a actualidade. Numa repartição pública, numa igreja, num autocarro ou numa livraria, aquilo que deixamos ver são os olhos. A ninguém se exige um sorriso, a ninguém podemos criticar uma boca de desdém, porque nem o sorriso nem o desdém se veem. 

Por outro lado, esta época de grande apreço pela condição física (tal como já aqui disse, os obesos são os alvos a abater nos dias de hoje) é concomitante com um grande e desconhecido e involuntário apreço pelas qualidades humanas. De facto, a elegância do corpo é o espelho da elegância da alma. O excesso ponderal faz suspeitar uma alma gorda, na linha do fígado gordo ou do baço gordo.

Os aforismos são interessantes; levados à letra poderão ser perigosos.

JdB

07 outubro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

O MAIOR HOTEL LITERÁRIO DO MUNDO FICA PERTO DE LISBOA

À maneira das boas histórias, esta também nasceu num sítio lindo, com passado rico ideal para favorecer um futuro auspicioso. Por isso, o hotel mais literário do mundo instalou-se no interior das muralhas de Óbidos, mesmo ao pé do castelo, aproveitando a matriz arquitectónica de um antigo convento de 1830, já fora de uso. 

O castelo, a porta principal das muralhas e o recorte azul-e-verde da lagoa de Óbidos.


À vista das muralhas, o hotel temático abriu em 2015, no local onde funcionara o Hotel Estalagem do Convento.  A cozinha (à dta.) é lugar de visita obrigatória.

No projecto do casal Marta Garcia e Telmo Faria, os livros assumem o lugar de honra e invadem todo o espaço do THE LITERARY MAN ÓBIDOS HOTEL, pelo que a decoração se organiza em torno das abertas deixadas pelos encadernados de todos os tamanhos, muitos em inglês, num acervo de mais de 45 mil volumes, que continua a crescer. Já é o maior hotel-biblioteca do mundo. Os escritores portugueses estão logo perto da entrada, em lugar visível. 

Sala-de-jantar

No intervalo dos livros, há escadarias, a garrafeira, a despensa, algumas prateleiras para garrafas e copos, num ambiente que se pretende descontraído e familiar.

Na cozinha, os visitantes podem participar na feitura da refeição, numa experiência de book and cook para praticarem as ementas tradicionais do chefe, numa ementa também carregada de história.

A decoração é sóbria e usa materiais reciclados, a somar aos azulejos, colunas de pedra e outras estruturas herdadas do convento oitocentista:

Numa das suites, dominam os painéis das réguas de madeira mesclada, feita a partir de aparas e desperdícios.

O sucesso deste projecto seguiu-se ao de outro hotel – o «Rio de Prado The Maker Man» -- a dar para um jardim, que se estende a um pomar e também acumula livros para os visitantes aproveitarem. Mas as actividades ao ar livre serão das principais atracções, a começar pela jardinagem. No restaurante deste hotel, a comida vem do prado para o prato.    




Por último, veio a casa de pasto «The History Man».  Não que faltassem restaurantes aos dois hotéis do casal, mas este concentra-se mesmo na sala de jantar e nas mesas da esplanada. Porém, o mérito começa na cozinha sempre aberta ao talento das visitas para uma patuscada divertida e cheia de bons sabores (espera-se).  Aqui, impera a tradição dos antecessores dos restaurantes, privilegiando-se os produtos frescos da época e da região: as batatas da várzea vêm da Amoreira e de Olho Marinho, os legumes são do Arelho, as frutas da Usseira, as cebolas do Sobral e por aí fora. 


Há umas décadas, o Turismo de Portugal lançou o slogan «Vá para fora cá dentro», para entusiasmar os portugueses a descobrirem e gozarem o país. Longe iam as restrições ao avião e às viagens longínquas, por recomendação sanitária. Hoje, há razões redobradas para ver e rever Portugal. Sítios giros não faltam. Haja tempo e condições para os (re)descobrir.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

04 outubro 2020

XXVII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 21,33-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo:
«Ouvi outra parábola:
Havia um proprietário que plantou uma vinha,
cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar
e levantou uma torre;
depois, arrendou-a a uns vinhateiros e partiu para longe.
Quando chegou a época das colheitas,
mandou os seus servos aos vinhateiros para receber os frutos.
Os vinhateiros, porém, lançando mão dos servos,
espancaram um, mataram outro, e a outro apedrejaram-no.
Tornou ele a mandar outros servos,
em maior número que
os primeiros.
E eles trataram-nos do mesmo modo.
Por fim, mandou-lhes o seu próprio filho, dizendo:
'Respeitarão o meu filho'.
Mas os vinhateiros, ao verem o filho, disseram entre si:
'Este é o herdeiro;
matemo-lo e ficaremos com a sua herança'.
E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e mataram-no.
Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?».
Eles responderam:
«Mandará matar sem piedade esses malvados
e arrendará a vinha a outros vinhateiros,
que lhe entreguem os frutos a seu tempo».
Disse-lhes Jesus: «Nunca lestes na Escritura:
'A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se a pedra angular;
tudo isto veio do Senhor e é admirável aos nossos olhos'?
Por isso vos digo:
Ser-vos-á tirado o reino de Deus
e dado a um povo que produza os seus frutos».


02 outubro 2020

Da dança e do sexo

Não me atirei a investigar a história da dança: não as danças de palco, mas as danças de salão. Não sei, por isso, quando é que nasceu a dança em casal. Sei, isso sim, quando acabou - e sei o que isso fez de mal à civilização.

Como já tive oportunidade de referir bastas vezes neste estabelecimento, olho para a dança com os meus olhos - e isso parece-me um enorme lugar-comum. Ver algumas pessoas numa pista de dança é perceber que a agitação do corpo ao som de uma música - ou apenas de um pau que bate num balde de metal - é algo de muito antigo, que se perde na escuridão dos tempos. Não sendo especialista na matéria (já fui especialista em matéria vaga, agora nem isso) vou presumir que a dança é como os filisteus: sempre houve, no raciocínio de um néscio que existiu. Seja para afugentar espíritos, seja para convocar os deuses, para dar sorte ou para esconjurar o mal, a raça humana já se agitava ainda antes de usar o fogo no seu quotidiano. 

Há uma semelhança interessante entre a dança e o sexo. Vou imaginar que há milhares de anos, os habitantes da Terra, depois de se terem agitado freneticamente à volta de uma fogueira, não escolheriam uma parceira com quem ir para a caverna de mão dada. O sexo era procriação, tal como a dança era exorcismo. A palavra par não tinha sido ainda inventada para o movimento mais ou menos coordenado dos corpos. Tudo era mais ou menos grupal.

Não sei o que provocou a dança em casal, 

(e é o facto de não saber que me permite escrever este ror de disparates)

o que sei é que há um momento de perfeição na existência do mundo em que dança e sexo atingem o seu ápice em conjunto: é aquele fugaz momento 

(e terá existido mesmo?)

em que as pessoas gostavam de dançar com uma determinada pessoa e que gostavam de fazer amor com uma determinada pessoa: uma espécie de fidelidade a atingir um pináculo. Depois, a partir de uma certa altura, a dança em casal terminou, como terminou uma certa vontade de fidelidade. Dança-se em grupo, onde as relações físicas são fluidas. Engana-se a pessoa com quem mantemos um vínculo afectivo, porque também as relações humanas são fluidas.

Dançar é um momento afectivo; fazer amor é um momento afectivo. Fazer ambas as actividades com outra pessoa que não aquela com quem escolhemos partilhar a vida pode ser um momento de perdição. Talvez por isso tenham acabado com as danças de agarração, como se diria num certo tempo.  

JdB    

   

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